por: Padre Raniero Cantalamessa
Roma, 1º de janeiro de 2007
1. No rastro do
ciclone
O ciclone O
Código da Vinci, de Dan Brown, não tem passado em vão. Em seu rastro estão
florescendo, como sempre ocorre nestes casos, novos estudos sobre a figura de
Jesus de Nazaré com a intenção de revelar seu verdadeiro rosto, coberto até
agora sob o manto da ortodoxia eclesiástica. Até quem de palavra se distancia
disso, se mostra influenciado de várias maneiras.
A tal filão
pertence na Itália o livro de Corrado Augias e Mauro Pesce, um jornalista de
fama e um historiador de profissão, Investigação sobre Jesus (Inchiesta
su Gesú, Mondadori, 2006). Este se presta a uma avaliação global de toda a
literatura sobre o "verdadeiro Jesus da história", que se publica aos
montes na Europa e na América e segue inspirando novelas, filmes e espetáculos.
Examino-o com a intenção de levar um pouco de clareza sobre toda a questão, em
nome da "História das origens cristãs" que ensinei durante
anos na Universidade Católica de Milão.
Existem, como
é natural, diferenças entre um e outro autor, entre o jornalista e o
historiador. Porém não quero cair eu mesmo no erro que, mais que qualquer
outro, compromete, em minha opinião, esta "investigação" sobre Jesus,
que é o de ter em conta única e exclusivamente as diferenças entre os
evangelistas, jamais as convergências. Parto então do que é comum aos dos
autores, Augias e Pesce. Pode-se resumir assim: existiram, no princípio, não
um, mas vários cristianismos. Uma de suas versões tomou vantagem sobre as
demais; estabeleceu, segundo o próprio ponto de vista, o cânon das Escrituras e
se impôs como ortodoxia, relegando as demais à categoria de heresias e
suprimindo sua lembrança. Contudo, atualmente podemos, graças a novas
descobertas de textos e a uma rigorosa aplicação do método histórico,
restabelecer a verdade e apresentar finalmente Jesus de Nazaré por aquilo que
foi verdadeiramente e que ele mesmo tentou ser, isto é, algo totalmente
diferente do que as diversas Igrejas cristãs têm pretendido até agora que
fosse.
Ninguém
contesta o direito de historiadores a aproximar-se da figura de Cristo,
prescindindo da fé da Igreja. É o que a crítica, crente e não crente, vem
fazendo desde há ao menos três séculos com os instrumentos mais refinados. A
questão é se a presente investigação sobre Jesus recolhe de verdade, mesmo de
forma divulgadora e acessível ao grande público, o fruto deste trabalho, ou se
em contrapartida traz logo de início uma drástica escolha dentro dele, acabando
por ser uma reconstrução de parte.
Considero
que, lamentavelmente, este segundo é o caso. O filão elegido é o que vai desde
Reimarus a Voltaire, a Renan, a Brandon, a Hengel, e hoje a críticos literários
e "professores de humanidades", como Harold Bloom e Elaine Pagels.
Completamente ausente está a contribuição da grande exegese bíblica,
protestante e católica, desenvolvida no pós-guerra, em reação às teses de
Bultmann, muito mais positiva acerca de possibilidades de sacar, através dos
evangelhos, o Jesus da historia.
Nos relatos
da paixão e morte de Jesus, por exemplo, em 1998, publicou Raymond Brown
("o mais distinto entre os estudiosos americanos do Novo Testamento,
com poucos rivais em âmbito mundial", segundo o New York Times) uma
obra de mil seiscentas e oito páginas. Foi definida pelos especialistas do
setor como "a medida segundo a qual todo futuro estudo da Paixão será
medido", porém de tal estudo não há rastro no capítulo dedicado aos
motivos da condenação e da morte de Cristo, nem figura na bibliografia final,
que refere diferentes títulos de obras em inglês.
Ao uso
seletivo dos estudos corresponde uma utilização igualmente seletiva das fontes.
Os relatos evangélicos são adaptações posteriores quando desmentem a própria
tese; são históricos quando concordam com ela. Até a ressurreição de Lázaro,
apesar de estar atestada somente por João, se levada em consideração, se pode
servir para fundar a tese da motivação política e de ordem pública da prisão de
Jesus (p. 140).
2. Mas o que
dizem os apócrifos?
Entremos no
debate mais direto da tese de fundo do livro. Antes de tudo a propósito das
descobertas de novos textos que haveriam modificado o marco histórico sobre as
origens cristãs. Trata-se essencialmente de alguns evangelhos apócrifos
descobertos no Egito em meados do século passado, sobretudo os códices de Nag
Hammadi. Sobre eles se realiza uma operação bastante sutil: atrasar o mais
possível a data de composição dos evangelhos canônicos e adiantar o mais
possível a data de composição dos apócrifos para podê-los usar como fontes válidas
alternativas aos primeiros. Porém, aqui se choca contra um muro não facilmente
vencível: Nenhum evangelho canônico (tampouco o de João, segundo a crítica
moderna) se deixa fechar mais além do ano 100 depois de Cristo, e nenhum
apócrifo se deixa fechar antes de tal ano. (Os mais ousados chegam, com
conjeturas, a fechá-los no início de III ou em meados do século II).
Todos os
apócrifos tomam ou supõem os evangelhos canônicos; nenhum evangelho canônico
faz respeito a um evangelho apócrifo. Um exemplo atualmente mais em voga: dos
cento e catorze ditos de Cristo no Evangelho copta de Tomé, setenta e nove têm
um paralelo nos Sinóticos, onze são variações das parábolas sinóticas. Somente
três parábolas não estão atestadas em outro lugar.
Augias,
seguindo o rastro de Elaine Pagels, crê poder superar este desvio cronológico
entre os Sinópticos e o Evangelho de Tomás, e é instrutivo ver de que maneira.
No Evangelho de João se assiste, segundo o autor, a uma clara tentativa de
desacreditar o apóstolo Tomé, a uma verdadeira perseguição contra ele,
comparável à de Judas. Prova: a insistência na incredulidade de Tomé! Hipótese:
o autor do Quarto Evangelho não quer talvez desacreditar as doutrinas que já em
seu tempo circulavam sob o nome de apóstolo Tomé e que confluirão depois no
evangelho que leva seu nome? Assim se supera o desvio cronológico. Esquece-se,
desta maneira, que o evangelista João põe precisamente na boca de Tomé a mais
comovedora declaração de amor a Cristo ("Iremos também nós morrer com
ele") e a mais solene profissão de fé nele: "Senhor meu e Deus
meu!" que, segundo muitos exegetas, constitui a coroação de todo seu
evangelho. Se Tomé é um perseguido pelos evangelhos canônicos, que dizer do
pobre Pedro com todo o que referem dele! A menos que não tenha ocorrido, também
em seu caso, para desacreditar os futuros apócrifos que levam seu nome...
Porém o ponto
principal não é tampouco o da data; é o dos conteúdos dos evangelhos apócrifos.
Dizem exatamente o contrário daquilo pelo que se invoca sua autoridade. Os dois
autores sustentam a tese de um Jesus plenamente introduzido no judaísmo, que
não tentou inovar nada a respeito daquilo; porém os evangelhos apócrifos
professam todos, uns mais e outros menos, uma ruptura violenta com o Antigo
Testamento, fazendo de Jesus o revelador de um Deus diferente e superior. A
revalorização da figura de Judas no evangelho homônimo se explica nesta lógica:
com sua traição, ele ajudará Jesus a libertar-se do último resíduo do Deus
criador, o corpo! Os heróis positivos do Antigo Testamento passam a ser
negativos para eles, e os negativos, como Cain, positivos.
Jesus é
apresentado no livro como um homem que somente a Igreja posterior elevou à
categoria de Deus; os evangelhos apócrifos, ao contrário, apresentam um Jesus
que é verdadeiro Deus, porém não verdadeiro homem, fazendo revestida somente a
aparência de um corpo (docetismo). Para eles, o que representa dificuldade não
é a divindade de Cristo, mas sua humanidade. Está-se disposto a seguir os
evangelhos apócrifos sobre este terreno seu?
Poderia-se
alongar a lista de equívocos no uso dos evangelhos apócrifos. Dan Brown se
baseia neles para endossar a idéia de um Jesus que exalta o princípio feminino,
que não tem problemas com o sexo, que se casa com Madalena... E para provar
isso se apóia no Evangelho de Tomé onde se diz que, se quer se salvar, a mulher
deve deixar de ser mulher e fazer-se homem!
O fato é que
os evangelhos apócrifos, em particular os de matriz gnóstica, não foram
escritos com a intenção de narrar fatos ou ditos históricos sobre Jesus, senão
para transmitir certa visão de Deus, de si mesmos e do mundo, de natureza
esotérica e gnóstica. Basear-se neles para reconstruir a história de Jesus é
como basear-se em Assim Falava Zaratustra não para conhecer o pensamento
de Nietzsche, mas o de Zaratustra. Por isso no passado, mesmo sendo já
conhecidos quase todos, ao menos em amplas passagens, ninguém pensou jamais em
poder utilizar os evangelhos apócrifos como fonte de informações históricas
sobre Jesus. Somente nossa era midiática, em busca exasperada de
novidades comerciais, está fazendo isso.
Existem,
certamente, fontes históricas sobre Jesus fora dos evangelhos canônicos, e é
estranho que se deixem praticamente de fora desta "investigação". A
principal é Paulo, que escreveu menos de trinta anos depois da morte de Cristo
e depois de ter sido um orgulhoso opositor seu. Seu testemunho somente é
discutido a propósito da ressurreição, porém para ser naturalmente
desacreditado. Não obstante, que há de essencial na fé e nos "dogmas"
do cristianismo que não se encontre já atestado (em sua substância, se não na
forma) em Paulo, isto é, antes que ele tivesse tempo de absorver elementos
alheios? Se pode, por exemplo, definir não histórico e fruto da preocupação
posterior de não alarmar a autoridade romana sobre o contraste entre Jesus e os
fariseus e a própria mentalidade legalista de um grupo deles, sem levar em
conta o que diz Paulo, que foi um deles e que precisamente por isso havia
perseguido firmemente os cristãos? Porém sobre isso voltarei mais adiante,
falando da história da Paixão.
3. Jesus: judeu,
cristão ou as duas coisas?
Chego agora
ao ponto principal compartilhado pelos dois autores. Jesus foi um judeu, não um
cristão; não tentou fundar nenhuma religião nova; se considerou enviado somente
para os judeus, não também para os pagãos; "Jesus é muito mais próximo
dos judeus religiosos de hoje que dos sacerdotes cristãos"; o
cristianismo "nasce nada menos que na segunda metade do século II".
Como
conciliar esta última afirmação com a notícia dos Atos dos Apóstolos (11,26)
segundo a qual não mais de sete anos depois da morte de Cristo, em torno do ano
37, "em Antioquia foi donde, pela primeira vez, os discípulos receberam
o nome de 'cristãos'"? Plínio o Jovem (uma fonte não suspeita!) entre
os anos 111 e 113, fala repetidamente dos "cristãos", de quem
descreve a vida, o culto e a fé em Cristo "como em um Deus".
Em torno dos mesmos anos, Inácio de Antioquia fala cinco vezes do cristianismo
como diferente do judaísmo, escrevendo: "Não é o cristianismo que
acreditou no judaísmo, mas o judaísmo que acreditou no cristianismo"
(Carta aos Magnesios, 10,3). Em Inácio, isto é, em inícios do século II, não
somente encontramos atestados os nomes "cristão" e "cristianismo",
mas também o conteúdo deles: fé na plena humanidade e divindade de Cristo,
estrutura hierárquica da Igreja (bispos, presbíteros, diáconos) até uma clara
alusão ao primado do bispo de Roma, "chamado a presidir na caridade".
Antes mesmo,
pelo demais, de que entrasse no uso comum o nome de cristãos, os discípulos
eram conscientes da identidade própria e a expressavam com termos como "os
crentes em Cristo", "os do caminho", ou "aqueles
que invocam o nome do Senhor Jesus".
Entre as
afirmações dos dois autores que acabo de referir há uma que merece considerar
seriamente e discutir à parte. "Jesus não tentou fundar nenhuma
religião nova. Era e continuou sendo judeu". Absolutamente verdadeiro:
em efeito, tampouco a Igreja, em rigor, considera o cristianismo como uma
"nova" religião. Se considera junto a Israel (uma vez se dizia
injustamente "em lugar de Israel") a herdeira da religião
monoteísta do Antigo Testamento, adoradores do mesmo Deus "de Abraão,
de Isaac e de Jacó". (Após o Concílio Vaticano II, o diálogo com o
Judaísmo não é levado adiante pelo organismo vaticano que se ocupa do diálogo
entre as religiões, mas pelo que se ocupa da unidade dos cristãos!). O Novo
Testamento não é um início absoluto, é o "cumprimento" (categoria
fundamental) do Antigo. Pelo mais, nenhuma religião nasceu porque alguém tentou
"fundá-la". Acaso Moisés tentou fundar a religião de Israel, ou Buda
o budismo? As religiões nascem e tomam consciência de si depois, por parte
daqueles que recolheram o pensamento de um Maestro e o fizeram razão de vida.
Porém, feita
esta precisão, se pode dizer que nos evangelhos não há nada que faça pensar na
convicção de Jesus de ser portador de uma mensagem nova? E suas antíteses:
"Ouvistes o que foi dito..., Eu, porém, vos digo" com as que
reinterpreta até os dez mandamentos e se põe ao mesmo nível de Moisés? Elas
enchem toda uma seção do evangelho de Mateus (5, 21-48) isto é, o mesmo
evangelista sobre o que faz referência, no livro, para afirmar o pleno judaísmo
de Cristo!
4. Legado para
os judeus, para os pagãos ou para ambos?
Teria Jesus a
intenção de dar vida a uma comunidade sua e previa que sua vida e doutrina
teriam continuidade? O fato indiscutível da escolha dos doze apóstolos parece
precisamente indicar que sim. Mesmo deixando de lado o grande mandato:
"Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura" (alguém
poderia atribuí-lo, em sua formulação, à comunidade pós-pascal), não se
explicam de outra forma todas aquelas parábolas cujo núcleo originário contém
justamente a perspectiva de uma ampliação aos gentios. Pense-se na parábola dos
vindimadores homicidas, dos trabalhadores da vinha, no dito respeito a que os
últimos serão os primeiros, ou sobre muitos que "virão do Oriente e do
Ocidente para sentar-se à mesa com Abraão", enquanto que outros serão
excluídos, e outras inumeráveis afirmações...
Durante sua
vida Jesus não saiu da terra de Israel, exceto alguma breve escapada aos
territórios pagãos do Norte; porém isto se explica com sua convicção de ter
sido enviado antes de tudo para Israel, para depois levá-lo, uma vez convertido,
a acolher em seu seio a todas as gentes, segundo as perspectivas universalistas
anunciadas pelos profetas. É muito curioso: existe todo um filão do pensamento
judeu moderno (F. Rosenzweig, H. J. Schoeps, W. Herberg) segundo o qual Jesus
não teria vindo para os judeus, mas somente para os gentios; segundo Augias e
Pesce em contrapartida, ele teria vindo somente para os judeus, não para os
gentios.
Há que
agradecer a Pesce que não aceita liquidar a historicidade da instituição da
Eucaristia e sua importância na comunidade primitiva. Este é um dos pontos nos
que mais emerge o inconveniente assinalado ao princípio, o de levar em conta
somente as diferenças, e não as convergências. Os três Sinóticos e Paulo
unanimemente atestam o fato quase com as mesmas palavras, porém para Augias
isto conta menos que o fato de que a instituição seja calada por João e que, ao
referi-la, Mateus e Marcos tenham "Este é meu sangue",
enquanto que Paulo e Lucas têm "Este cálice é a Nova Aliança em meu
sangue".
A palavra de
Cristo: "Fazei isto em memória de mim", pronunciada em tal
ocasião, recorda o Êxodo 12,14 e mostra a intenção de dar ao
"memorial" pascal um novo conteúdo. Não por nada Paulo em pouco tempo
falará de "nossa Páscoa" (1 Co 5, 7), distinta da dos judeus.
Se à Eucaristia e à Páscoa se acrescenta o fato incontroverso da existência de
um batismo cristão desde o dia seguinte à Páscoa, que progressivamente
substitui a circuncisão, temos os elementos essenciais para falar, se não de uma
nova religião, de uma forma nova de viver a religião de Israel. Quanto ao
cânone das Escrituras, é certo o que afirma Pesce (p. 16) a respeito de que o
elenco definitivo dos atuais vinte e sete livros do Novo Testamento foi fixado
somente com Atanásio no ano 367, porém não se deveria silenciar o fato de que
seu núcleo essencial, composto pelos quatro evangelhos mais treze cartas
paulinas, é muito mais antigo; se formou até o ano 130 e no final do século II
goza já da mesma autoridade que o Antigo Testamento (fragmento Muratoriano).
"Igual
Paulo, como Jesus – se disse – não é um cristão, mas um judeu que permanece no
judaísmo". Também isto é certo; não diz acaso ele mesmo: "São
judeus? Também eu! Até eu mais que eles!"? Porém isto não faz mais que
confirmar o que acabo de advertir sobre a fé em Cristo como
"cumprimento" da lei. Por um lado Paulo se sente no próprio coração
de Israel (do "resto de Israel", precisará ele mesmo); por
outro se separa dele (do judaísmo de seu tempo) com sua atitude para com a lei
e sua doutrina da justificação mediante a graça. Sobre a tese de um Paulo
"judeu e não cristão" seria interessante ouvir o que pensam os
próprios judeus...
5. Responsável
por sua morte: o Sinédrio, Pilatos ou os dois?
Merece
discussão à parte o capítulo do livro de Corrado Augias e Mauro Pesce sobre o
processo e a condenação de Cristo. A tese central não é nova; começou a
circular depois da tragédia da Shoa e foi adotada por aqueles que
propugnavam nos anos sessenta e setenta a tese de um Jesus zelota e revolucionário.
Segundo esta, a responsabilidade da morte de Cristo recai principalmente,
inclusive talvez exclusivamente, em Pilatos e na autoridade romana, coisa que
indica que sua motivação é mais de ordem política que religiosa. Os evangelhos
desculpam Pilatos e acusam os chefes do judaísmo para tranqüilizar as
autoridades romanas a respeito e mantê-las amistosas.
Esta tese
nasceu de uma preocupação justa que hoje todos compartilhamos: cortar de raiz
todo pretexto de anti-semitismo que tanto mal tem causado ao povo judeu por
parte dos cristãos. Porém a ofensa mais grave que se pode fazer a uma causa
justa é defendê-la com argumentos errôneos. A luta contra o anti-semitismo deve
ser situada em um fundamento mais sólido que uma discutível (e discutida) interpretação
dos relatos da Paixão. O distanciamento do povo judeu, enquanto tal, à
responsabilidade pela morte de Cristo, repousa em uma certeza bíblica que os
cristãos têm em comum com os judeus, porém que lamentavelmente por muitos
séculos foi estranhamente esquecida: "Sim, a pessoa que peca é a que
morre! O filho não sofre o castigo da iniqüidade do pai, como o pai não sofre o
castigo da iniqüidade do filho" (Ez 18,20). A doutrina da Igreja
conhece um só pecado que se transmite por herança de pai a filho, o pecado
original, nenhum mais.
Já assegurada
a recusa do anti-semitismo, desejaria explicar por que não se pode aceitar a
tese do total distanciamento das autoridades judaicas a respeito da morte de
Cristo e portanto da natureza essencialmente política dela. Paulo, na mais
antiga de suas cartas, escrita em torno do ano 50, apresenta, da condenação de
Cristo, a mesma versão fundamental dos evangelhos. Diz que os "judeus
mataram o Senhor Jesus" (1 Ts 2,15) e sobre os fatos acontecidos em
Jerusalém pouco tempo antes de sua chegada à cidade ele devia estar melhor
informado que nós, os modernos, havendo, em um tempo, aprovado e defendido
"obstinadamente" a condenação do Nazareno.
Durante esta
fase mais antiga o cristianismo se considerava mesmo destinado principalmente a
Israel; as comunidades nas que se haviam formado as primeiras tradições orais
confluídas depois nos evangelhos estavam constituídas em sua maioria por judeus
convertidos; Mateus, como observam também Augias e Pesce, está preocupado por
mostrar que Jesus veio cumprir, não a abolir, a lei. Se havia portanto uma
preocupação apologética, esta teria induzido a apresentar a condenação de Jesus
como obra mais dos pagãos que das autoridades judias, a fim de tranqüilizar os
judeus da Palestina e da diáspora em relação com os cristãos.
Por outro
lado, quando Marcos e, com segurança, os demais evangelistas escrevem seu
evangelho já tem sucedido a perseguição de Nero; isso deveria impulsionar a ver
em Jesus a primeira vítima do poder romano e nos mártires cristãos a quem havia
sofrido a mesma sorte que o Mestre. Tem-se uma confirmação disso no Apocalipse,
escrito depois da perseguição de Domiciano, no que Roma se faz objeto de uma
injúria feroz ("Babilônia", a "Besta", a "prostituta")
por causa do sangue dos mártires (Ap 13 ss.). Pesce tem razão ao divisar uma
"tendência anti-romana" no evangelho de João (p. 156), porém
João é também quem mais acentua a responsabilidade do Sinédrio e dos chefes
judeus no processo contra Cristo: como se concilia isto?
Não se podem ler
os relatos da Paixão ignorando tudo o que os precede. Os quatro evangelhos
atestam, pode-se dizer que em cada página, um contraste religioso crescente
entre Jesus e um grupo influente de judeus (fariseus, doutores da lei,
escribas) sobre a observância do sábado, sobre a atitude com os pecadores e os
publicanos, sobre o puro e o impuro. Jeremias demonstrou a motivação
anti-farisaica presente em quase todas as parábolas de Jesus. O dado evangélico
é tanto mais crível enquanto que o contraste com os fariseus não é em absoluto
geral e por preconceito. Jesus tem amigos entre eles (um é Nicodemos); o
encontramos às vezes comendo na casa de algum deles; estes aceitam ao menos
falar com ele e levá-lo a sério, diferentemente dos saduceus. Sem excluir
portanto que a situação posterior tenha influído em carregar ulteriormente as
tintas, é impossível eliminar todo contraste entre Jesus e uma parte influente
da liderança judia de seu tempo, sem desintegrar completamente os evangelhos e
fazê-los historicamente incompressíveis. A obstinação do fariseu Saulo contra
os cristãos não havia nascido do nada e não a havia levado consigo de Tarso!
No entanto,
uma vez demonstrada a existência deste contraste, como se pode pensar que ele
não tenha jogado papel algum no momento do ajuste final de contas e que as
autoridades judias se tiveram decidido denunciar Jesus ante Pilatos unicamente
por temor a uma intervenção armada dos romanos, quase a seu pesar?
Pilatos não
era certamente uma pessoa sensível a razões de justiça, como para preocupar-se
da sorte de um desconhecido judeu; era um sujeito duro e cruel, disposto a
reprimir com sangue o mínimo indício de revolta. Tudo isso é muito certo. Porém
ele não tenta salvar Jesus por compaixão para com a vítima, mas somente por
porfia contra seus acusadores, com os quais estava em marcha uma guerra surda
desde a sua chegada. Naturalmente isso não diminui em absoluto a
responsabilidade de Pilatos na condenação de Cristo, que recai sobre ele não
menos que sobre os chefes judeus.
Não é coisa,
sobretudo, de querer ser "mais judeu que os judeus". Das notícias
sobre a morte de Jesus, presentes no Talmud e em outras fontes judaicas
(por mais que sejam tardias e historicamente contraditórias) emerge algo: a
tradição judia jamais negou uma participação das autoridades religiosas do
tempo na condenação de Cristo. Não fundou a própria defesa negando o fato,
senão em todo o caso negando que o fato, desde o ponto de vista judaico,
constituía delito e que a sua condenação fora uma condenação injusta. Uma versão,
esta compatível com a das fontes neotestamentárias que, enquanto por uma parte
tiram à luz a participação das autoridades judias (dos saduceus talvez mais que
dos fariseus) na condenação de Cristo, por outra parte freqüentemente a
excluam, atribuindo-a à ignorância (Lc 23,34; Hch 3, 17; 1 Co 2,8). É o
resultado a que chega também Raymond Brown, em seu livro de mil seiscentas e
oito páginas sobre "La muerte del Mesías".
Uma nota
marginal, porém que toca um ponto bastante delicado. Segundo Augias, Lucas
atribui a Jesus as palavras: "Porém àqueles inimigos meus, os que não
quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-los aqui e matai-os diante de mim"
(Lc 19, 27), e comenta dizendo que "é em frases como estas que cobram
forças os partidários da 'guerra santa' e da luta armada contra os regimes
injustos". Há que precisar que Lucas não atribui tais palavras a
Jesus, senão ao rei da parábola que está narrando, e se sabe que não se podem
trasladar tal qual da parábola à realidade todos os detalhes do relato parabólico,
e que em qualquer caso há que trasladá-los do plano material ao espiritual. O
sentido metafórico daquelas palavras é que aceitar ou recusar a Jesus não
carece de conseqüências; é uma questão de vida ou morte, porém vida e morte
espiritual, não física. A guerra santa não tem nada a ver com a outra guerra.
6. Um balanço
É hora de
fechar esta minha leitura crítica com alguma reflexão conclusiva. Não
compartilho muitas respostas de Pesce, porém o respeito reconhecendo-lhe pleno
direito de cidadania a uma investigação histórica. Muitas delas (sobre a
atitude de Jesus para a política, os pobres, as crianças, a importância da
oração em sua vida) são inclusive iluminadoras. Alguns dos problemas suscitados
— o lugar de nascimento de Jesus, a questão dos irmãos e das irmãs dele, o
parto virginal — são objetivas e debatidas inclusive entre historiadores
crentes (o último não entre os católicos) porém não são os problemas com os que
permanecem ou caem o cristianismo da Igreja.
Menos
justificada em uma "investigação" histórica sobre Jesus me parece a
atenção com a que Augias recolhe todas as insinuações sobre supostos vínculos
homossexuais existentes entre os discípulos, ou entre ele mesmo e "o
discípulo que amava" (porém não tinha que estar apaixonado pela
Madalena?) como também a detalhada descrição de escabrosos sucessos de algumas
mulheres presentes na genealogia de Cristo. Da investigação sobre Jesus se tem
a impressão de que se passa às vezes a falatório sobre Jesus. Porém o fenômeno
tem uma explicação. Sempre existiu a tendência a revestir Cristo com as
roupagens da própria época, ou as da própria ideologia. No passado, se bem
discutíveis, se tratava de causas sérias e de grande alento: o Cristo
idealista, socialista, revolucionário... Nossa época, obcecada com o sexo, não
consegue pensar nele mais que concentrado em problemas sentimentais.
Considero que
o fato de haver situado juntas, uma visão de corte jornalístico declaradamente
alternativa, com uma visão histórica também radical e minimalista, levou a um
resultado em conjunto inaceitável, não somente para o homem de fé, mas também
para o historiador. Ao final da leitura, um se pergunta: como fez Jesus, que
não trouxe absolutamente nada novo a respeito do judaísmo, que não quis fundar
nenhuma religião, que não realizou nenhum milagre nem ressuscitou mais que na
mente alterada de seus seguidores, como fez, repito, para converter-se no
"homem que mudou o mundo"? Uma certa crítica parte com a
intenção de dissolver estas roupagens postas a Jesus de Nazaré pela tradição
eclesiástica, porém ao final o tratamento se revela tão corrosivo que dissolve
até a pessoa que está sob eles.
A força de
dissipar os "mistérios" sobre Jesus para reduzi-lo a um homem
ordinário acaba por criar um mistério mesmo mais inexplicável. Um grande
exegeta inglês, falando da ressurreição de Cristo, diz: "A idéia de que
o imponente edifício da história do cristianismo seja como uma enorme pirâmide
situada sobre um fato insignificante é certamente menos crível que a afirmação
de que todo o acontecimento – o dado de fato mais o significado inerente a ele
– haja ocupado realmente um lugar na história comparável ao que lhe atribui o
Novo Testamento" (Cf. H. Dodd).
A fé
condiciona a investigação histórica? Inegavelmente, ao menos em certa medida.
Porém creio que a incredulidade a condiciona enormemente mais. Se um se
aproxima da figura de Cristo e dos evangelhos como não crente (é o caso, creio
entender, pelo menos de Augias) o essencial já está decidido de partida: o
nascimento virginal não poderá senão ser um mito, os milagres, fruto de
sugestão, a ressurreição, produto de um "estado alterado da consciência",
e assim sucessivamente. Algo, no entanto, nos consola e nos permite seguir
respeitando-os reciprocamente e continuar o diálogo: se nos divide a fé, nos
une em compensação "a boa fé". Nela os dois autores declaram ter
escrito o livro e nela asseguro que o li e discuti.
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Cite sempre a fonte:
Do blog: http://www.alfredo-braga.pro.br/discussoes/evangelhos.html
pesquisa realizada dia 05/04/2012
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