Em 2Co 2:1-11 há uma referência de Paulo a uma polêmica para com um membro da igreja que teria abalado o relacionamento entre a comunidade e o próprio apóstolo. Também se diz de uma Carta que teria sido escrita com "muitas lágrimas", Carta esta que teria levado a igreja a uma postura disciplinar para com um membro ofensor. Quem seria este membro? A quem teria ofendido e qual teria sido a ofensa? Quando essa ofensa teria ocorrido?
Além de uma referência em 2Co 7:12, a Carta não traz maiores detalhes, contudo, a extensa maioria dos comentaristas acredita que depois da escrita de 1Co, Paulo teria ido pessoalmente a Corinto na tentativa de resolver certos problemas e teria sido confrontado por um membro rebelde. Em resultado disso teria escrito uma Carta com "muitas lágrimas", motivando uma ação disciplinar por parte da comunidade coríntia. A disciplina ocorrida mostrava a Paulo que a igreja se submetia a seu governo apostólico e por isso, em 2Co 2:1-11, Paulo não apenas elogia essa postura, mas busca uma restauração de relacionamentos.
Essa me parece uma versão bastante plausível dos fatos. Todavia, essa perspectiva não encontra lugar no Comentário Bíblico Adventista (CBASD).
Tenho me perguntado sobre o por quê do CBASD se esforçar tanto para a rejeição da proposta de que Paulo tenha ido a Corinto no intervalo das duas cartas canônicas e tenha sido ali confrontado por um membro ofensor. Na verdade, nenhum comentarista que eu tenha pesquisado rejeita essa possibilidade, além de autores adventistas. E sem muita base, diga-se de passagem. Me pergunto se não seria uma tentativa extremada de conciliar a Bíblia com algumas inferências de Ellen White. Em sua obra Atos dos Apóstolos, pág. 322-23, fazendo referência ao texto de 2Co 2:13, a autora fala de certas ansiedades de Paulo sobre o que havia escrito aos coríntios, e supõe-se a partir disso que essas ansiedades tenham sido motivadas pela Carta 1Co. Todavia, em todo o livro, ela ignora completamente o episódio da crise com a pessoa mencionada em 2Co 2:1-11 e 7:12. O problema é que qualquer estudioso atento perceberá que o caso foi determinante para a escrita de 2Co. Porque ela não cita? Me arrisco a perguntar se não seria pelo fato de que nem tudo estava claro para ela e que de fato há lapsos na história de Paulo com esta igreja que ainda precisam ser preenchidos sem afetar a perspectiva geral da autora.
O CBASD tenta, diante dessa dificuldade, fazer alguns ajustes, e afirma que o texto de 2Co 2:1-11 trata de uma crise com a igreja de modo geral e não uma afetação de Paulo com um membro particular. Em um artigo, o Dr. Ozeas Caldas Moura deixa aberta a proposta de que o ofensor seria o membro incestuoso citado por Paulo em 1Co 5:1. Porém, a leitura atenta revela que Paulo trata de um caso específico de disciplina e perdão para alguém que o feriu e foi disciplinado pela comunidade e agora precisa ser perdoado, e não de um caso generalizado ou restrito apenas à convivência interna da igreja.
Além disso, como ficaria a questão da menção de Paulo a uma segunda ida à igreja que teria ocorrido antes da escrita de 2Co, conforme mencionado em 2Co 12:14 e 13:1? Claramente Paulo fala de uma "terceira vez" que irá ter com a igreja, o que sugere de fato a ocorrência de uma ida até eles antes da escrita e envio de 2Co. Diante dessa nova dificuldade, O CBASD sugere uma ida do apóstolo a Corinto após a fundação da igreja, mas antes da escrita de 1Co, e não no intervalo das Cartas. Porém, penso que essa proposta não dá certo. Forçado demais! Considerando que Paulo fala que sua primeira Carta canônica foi motivada tanto por de situações que soube pela boca de familiares fofoqueiros de Cloe (1Co 1:11) e de situações que foram expostas em uma carta que os próprios corintios enviaram a ele (1Co 7:1), não há lugar para a hipótese de Paulo teria visto pessoalmente a igreja depois de sua fundação. Fosse o caso de Paulo ter ido até eles imediatamente depois da fundação da igreja (a cronologia não bate com Atos), porque não lidou pessoalmente com os casos? Ou ainda: porque não lida como se ele de fato tivesse presenciado os fatos, mas diz que "geralmente se ouve que há entre vós?" (1Co 5:1). Porque ao contrário, sempre fala das questões recorrendo ao que ouviu de terceiros e ao que leu em uma carta recebida?
Há muitos desacordos sobre a quantidade de Cartas, quando foram escritas, quantos contatos Paulo teria tido com a comunidade e como foram organizados os materiais. O CBASD fala de três Cartas, e dá um "talvez" para uma quarta. Alguns, como Hale em sua Introdução ao Estudo do Novo Testamento e Thielman, em sua Teologia do Novo Testamento vêm pelo menos quatro Cartas. O erudito F. F. Bruce vê cinco Cartas e propõe que 2Co 10-13 seria uma edição da quinta Carta, com escrita posterior mas anexada a 2Co por um Editor. Em seu comentário, Comblin consegue ver pelo menos seis Cartas. Para ele, em 2Co haveria uma edição de cinco Cartas, sendo que nela haveria uma seção que seria a Carta desaparecida mencionada em 1Co 5:9, além da Carta de Lágrimas mencionada em 2Co 2:4.
Que Paulo teria ido lá antes da escrita de 2Co se percebe em 2Co 13:1, quando fala de uma "terceira vez" que irá ter com eles. Que houve uma crise pessoal entre Paulo e um membro ofensor é um ponto difícil de refutar. Depois de muita leitura e revisão, até em Ellen White, concluo:
Logo no fim, em 13:1 Paulo fala de uma terceira ida a Corinto. Então, de fato, ele teria ido lá pelo menos duas vezes antes da escrita de 2Co: Uma ida no início da igreja relatado em At 18 e outra ida cuja data não está definida, mas cabe perfeitamente no intervalo das Cartas canônicas.
Também parece que 1Co foi antecedida por uma carta anterior (Carta A) citada em 1Co 5:9 ("já em carta vos escrevi..."). Após o envio da primeira correspondência, Paulo teria recebido uma carta resposta, citada em 1Co 7:1 ("quanto ao que me escrevestes..."). Assim, 1Co seria não a primeira, mas uma segunda Carta (Carta B) de Paulo aos coríntios.
É fato e não suposição uma segunda ida, causando alguns estranhamentos, que serão tratados com uma "Carta de lágrimas" (Carta C) citada em 2Co 2:4, na qual Paulo pedia soluções prontas da comunidade coríntia. Conforme Paulo mesmo reconhece, houve atendimento das recomendações apostólicas e após a punição da maioria sobre o ofensor, era o momento da reconciliação. Desse modo, 2Co (Carta D), poderia ter sido uma quarta Carta, senão uma edição de duas Cartas numa só (não creio mas é suposto em Bruce). As possibilidades variam. Mas pelo que se pode deduzir, ficaria assim:
1. Paulo vai a Corinto e funda a igreja (At 18);
2. Envia uma Carta A (1Co 5:9);
3. Recebe uma Carta resposta com questionamentos da igreja sobre alguns problemas internos (1Co 7:1);
4. Paulo envia uma Carta B que é a 1Corintios;
5. Paulo vai a Corinto resolver dilemas causados pela Carta B e há constrangimentos (2Co 2:5). Essa seria uma ida antes da "terceira vez", mencionada em 2Co 13:1;
6. Paulo envia uma terceira Carta, que é a "Carta de lágrimas" (Carta C) para resolver o dilema (2Co 2:4);
7. O dilema foi resolvido e há a quarta Carta, reparando os danos, que é 2Corintios (Carta D).
Segundo essa cronologia, houve pelo menos quatro Cartas e duas idas antes da escrita de 2Co. Dessas Cartas, duas ficaram desaparecidas e duas foram preservadas, as canônicas. Pelo menos é assim que entendo e se pode deduzir do caso do estranhamento citado em 2Co 2:1-11. Mas são apenas apontamentos.
Fica a lição de que os membros da igreja de Cristo precisam viver em unidade e respeito às autoridades instituídas. Além disso, esse incidente revela que tanto tolerância quanto disciplina são elementos necessários para o desenvolvimento saudável de uma comunidade.
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