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Filme Mississipi em Chamas e as Justificativas Bíblicas da Segregação


Depois de um sábado de trabalho, em fins de outubro, antes de me recolher, me detive para assistir ao filme "Mississipi em Chamas". Trata-se de um clássico da década de 80, baseado em fatos reais, dirigido por Alan Parker e protagonizado por Gene Hackman e Willen Dafoe. Na ocasião, queria apenas me demorar frente à TV até que o sono chegasse, mas o filme foi crescendo no ritmo, e deu que fiquei preso à história até o fim. Findo o filme, naquele noite, fui para a cama com uma sensação de gosto amargo na boca, um mal estar plantado na alma, diante da realidade histórica presenciada.

Ao amanhecer, em minhas reflexões habituais, pensei no quão revoltante é o fato de que a escravidão e a segregação norte-americana se estabeleceram com amparo de um discurso religioso, que buscava nas Escrituras a sua justificativa. De fato, este não seria o primeiro caso, uma vez que em diversos momentos da História, as Escrituras foram usadas para justificar certas práticas abomináveis, como o anti-judaísmo e o sexismo. Há quem afirme, inclusive (como o faz J. D. Crossan), que o start e justificativa do anti-judaísmo Nazista teria sido a exposição de Hitler a uma peça de teatro baseada na crucifixão de Jesus. Foi ali que o discurso anti-semita encontrou sua justificativa por meio de um discurso religioso.

Esse tema do desvirtuamento da ética cristã, buscando sua base na Bíblia, já foi explorado também em outros filmes, tais como "Ágora", no qual se descreve o período quando a sociedade mista de Alexandria se polarizou, gerando um conflito civil, em função da participação de uma personagem histórica, Hipática (Rachel Weiss), nas causas públicas do Estado Grego. Em diversos momentos do filme, as Escrituras são usadas pelos crentes para justificar o sexismo e a violência contra Hipática, única personagem feminina do filme. Dirigido por Alejandro Amenábar,  "Ágora" retratou em cores vívidas a intolerância religiosa que prevaleceu entre judeus, cristãos e pagãos na sociedade alexandrina, no quarto século, provocado pelo uso equivocado das Escrituras. Embora o cenário político-social retratado em "Ágora" desperte o repúdio dos cristãos piedosos,  no que se refere à questão da intolerância, não se compara em dimensão ao que é retratado no grande clássico estrelado por Hackman e Dafoe. 

A trama é simples, embora o desenrolar da história seja um tanto impactante. Enviados ao Sul dos EUA para solucionar um caso de desaparecimento de três jovens engajados nos Direitos Civis em defesa dos negros oprimidos, dois detetives (Hackman e Dafoe) acabam se envolvendo com outros crimes causados por um grupo de fanáticos nacionalistas e pela rede secreta da Kan-Klux-Kan, radicada na pequena cidade do Mississipi. O filme retrata situações conhecidas do período, tais como execuções sumárias de negros, segregação em ambientes públicos como em lanchonetes, banheiros e até mesmo em ambientes cristãos de culto. Aliás, é bom que se diga que nem mesmo nas igrejas dos negros era dada a possibilidade de cultuar em sossego. Diversas vezes são espancados e incendiados em suas casas de oração, por grupos de brancos fanáticos. 

Há dois momentos memoráveis no filme. Um deles, quando Mrs. Pell (Frances McDormand), esposa de um policial criminoso (Brad Dourif) afirma: 
"Ninguém nasce com ódio. Ele é ensinado. No colégio eles ensinam que a segregação está na Bíblia, Gênesis 9:27. Aos sete anos, repetem tantas vezes que você acaba acreditando. Passa a acreditar no ódio, vive o ódio, respira ódio, casa com ele." 

Outro momento surge já no fim do filme. Ao encontrarem o corpo do prefeito da cidade pendendo de uma forca com a qual havia se suicidado após o crime que forma o enredo do filme ter sido desvendado, há o seguinte diálogo entre os agentes Ward (Dafoe) e Byrt (Kevin Dunn): 
"- Porque ele fez isso? Nem estava envolvido, nem pertencia à Kan-Klux-Kan..."
"- Sr. Byrt, ele era culpado. Qualquer um é culpado quando assiste isso acontecer e finge que não acontece. Ele era culpado, sim. Tão culpado quanto os fanáticos que puxaram o gatilho. Talvez todos nós sejamos."

Talvez a principal ênfase do filme seja esta. Ele é uma crítica direta ao moralismo norte americano, que se contradiz em sua ética, tida como originada do protestantismo. Em seu artigo "Escravidão e Liberdade: o paradoxo americano", Edmund S. Morgan desperta um questionamento: Como conciliar o paradoxo do discurso americano da liberdade com o da escravidão, negando o valor da igualdade, em um país construído sob a perspectiva da religião cristã?  Porém, temos de concordar que de fato esse paradoxo é verdadeiro: O ódio ou preconceito pode ser afirmado, muitas vezes, por meio do discurso religioso. E como afirmado no filme, tantos quantos vêm o ódio ser ensinado e praticado e nada fazem, são tão culpados quantos os intolerantes que puxam o gatilho. 

Pelo que se sabe, a Igreja Católica  parece ter sido oficialmente contra a escravidão negra. Várias bulas papais, como a "Sicut Dudum", de Eugênio IV (1383-1447), foram contrárias a essa prática. Todavia, nos EUA, em certos momentos o biblicismo foi tão doentio, que de fato, por muito tempo se justificava por meio da Bíblia, a prática da segregação e do sexismo. Havia, inclusive, igrejas segregadas, onde os brancos excluíam os negros de suas reuniões. Consta, que em seu Seminário, Charles F. Parhan (1873-1929), considerado um dos "pais" do Pentecostalismo, era membro da Kan-Klux-Kan e não dava acesso à sala de aula ao seu aluno negro, William Seymour, fundador do movimento da Rua Azuza, 312, em 1906. Seymour assistia às aulas assentado no corredor da escola. Além disso, os mórmons, que linkavam os traços e cor dos negros à figura de Caim, só renunciaram essas ideias racistas com base na Bíblia, em anos recentes. 

Uma evidência de uma visão religiosa distorcida, se encontra no livro "Enterrem as Correntes", de Adam Hochschild. Nele ha o relato da perspectiva de John Newton, que foi mercador de escravos antes de sua conversão. Como escreveu em seu diário de bordo, para Newton, os escravos eram "criaturas inferiores" e "sem alma cristã" e, portanto, não destinadas ao "outro mundo". Ela apenas "morrem" ou apenas "são enterradas", enquanto que os brancos, privilegiadamente, "partem dessa vida" (obra citada, pág. 37). Hochschild também defende a tese de que somente depois de um despertamento da consciência religiosa de clérigos americanos tais como o próprio John Newton (já convertido), o abolicionismo norte americano deu passos largos para a consolidação. 

O texto bíblico citado no diálogo acima ("...e Cam lhe seja escravo", Gn 9:27) se refere à profecia de Noé para seus filhos, após sua exposição por conta da embriaguez, e foi, em diversos momentos, usado para justificar tanto o ódio pelos negros quanto a prática da escravidão. Porém, se há quem defenda supremacia de cor, sendo cristão, posta-se claramente de modo contrário Àquele que deixou a ética do Bom Samaritano como um referencial para os relacionamentos, nas Escrituras. Não há lugar para intolerância, racismo, sexismo, xenofobia ou qualquer outro preconceito, considerando a ética de Cristo. Em Gálatas 3:28 há uma orientação acerca da inclusão e da igualdade, no ambiente cristão: "Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus." 

Voltando ao tópico inicial, com seu roteiro baseado em fatos verídicos, "Mississipi em Chamas" é, de fato, um filme notável. Apesar de haver recebido algumas críticas por não ser tão fiel à História quanto deveria, tem seu teor de verdade, ao expor de forma explícita, a profundidade da maldade humana, desafiando  nossa percepção ética e comportamental, esboçada às vezes em atos de crueldade, realizados até mesmo em nome da fé. Uma boa sugestão para os jovens em semanas voltadas para a Consciência Negra. Ajuda no despertamento dos valores humanos e resgata a memória de uma dívida histórica, perceptível em todo o ocidente cristão. E há coisas que não se pode esquecer. - Claudio Sampaio


APÊNDICE:

Sobre o dever de não se esquecer, há poucos dias atrás, os cristãos Protestantes celebraram os quase quinhentos anos da Reforma Protestante. Em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero afixou 95 teses (alguns teimam em dizer que ele não fez tal coisa) na porta da igreja de Wittenberg, Alemanha, chamando a Igreja a uma Reforma de suas práticas, tendo "Só as Escrituras" como base da fé. Esse ato de Lutero fez eclodir a era da Reforma, com seu apelo às Escrituras. 

Porém, como dizia o holandês Gisbertus Voetius, "Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est” ("Igreja Reformada Sempre se Reformando Está"). Assim sendo, depois de tantos anos, vale a pena pensar sobre alguns pontos que precisamos evoluir como Protestantes, e prosseguir na Reforma proposta pelos Reformadores. De modo especial, penso que vale a pena repensar (não negar) a ideia "a Bíblia e a Bíblia só" em nossa prática hodierna. Nesse ponto não posso ser mal compreendido: Afirmo que embora seja adequado o apelo à Bíblia como regra de fé e conduta, penso que essa proposta tem levado também a alguns excessos. Se por um lado, a centralidade na Bíblia seja uma boa saída para diversos problemas relacionados ao mau uso das Escrituras, por outro, o biblicismo é reconhecidamente o pai do fundamentalismo e tão danoso quanto ou mesmo pior que o ceticismo.

Amemos a Bíblia. Que ela seja de fato, a nossa regra de fé. Mas que em seu uso, ela jamais nos afaste da ética de Cristo. Que a usemos com o devido equilíbrio. (Claudio S. Sampaio, Taiobeiras, 2015).

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Copie, mas cite a fonte
http://pastorclaudiosampaio.blogspot.com

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