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Considerações em Torno do Quarto Evangelho


Por Claudio Soares Sampaio 
Pastor em São Francisco, MG

- Texto Reeditado

O Quarto Evangelho tem sido destacado pela sua profundidade teológica. Para Rice (2006), em relação aos sinóticos, este evangelho está à parte. Segundo Bornkamm (2004), ele é tão singular que desafia qualquer classificação entre os demais escritos do Novo Testamento (NT). Contudo, mais que qualquer outro evangelho, ele se encontra no centro do debate acadêmico. De acordo com Cullmann (2002), a dúvida acerca de sua autenticidade surge desde os dias do segundo século. Segundo Bornkamm (2004), a atribuição histórica de uma data tardia para este livro não é porque não se saiba o que fazer com ele, mas por uma série de questões que ainda abertas em sua teologia. Mesmo sua autoria tornou-se uma questão sem solução, e por isso, Bornkamm (2004) entende que é preferível deixar o documento como anônimo.  Mas ainda assim, o assunto merece algumas considerações.  Este breve ensaio não esgota o interesse daqueles que desejam aprofundar na Teologia do Evangelho de João, mas se propõe a refletir as questões básicas que envolvem este livro, com base nos escritos de Hale (2002), Cullmann (2003), Kümmel (2005) e principalmente em D. A. Carson (2007).

Como se disse acima, embora a questão autoria do Quarto Evangelho tenha sido apresentada por muitos como algo sem importância, valorizando mais o seu conteúdo (assim CULLMANN, 2003; BORNKÄMM 2005; e KÜMMEL, 2005), porém, ao lado de outros autores (como HALE 2002) Carson (2007) tem enfatizado a comprovação da autenticidade da autoria apostólica do Quarto Evangelho, entendendo que isso conferirá certo grau de valor ao documento para a fé cristã. De qualquer modo, tem-se encontrado justificativas para ambas as posições. Em seu comentário Carson (2007), apresenta uma série de argumentos favoráveis à autoria joanina, desde evidências externas, oriundas de declarações dos Pais da Igreja até evidências internas, permitindo que uma posição favorável a essa opinião não seja de nenhum modo descartável ou infundada. Em vista disso, ele se baseia na tese de que a autoria direta ou indireta desse evangelho vem do apóstolo João, um dos filhos de Zebedeu.  

Isso posto, pode-se discutir com mais vigor o local e ambiente do Quarto Evangelho. No que tange à localidade da escrita, tem-se apresentado diversas possibilidades.  Carson (2007) apresenta quatro probabilidades propostas pelos biblistas ao longo dos anos: 1) Alexandria, devido alguma similaridade de idéia entre a literatura joanina e os escritos de Filo e a literatura de Sabedoria. Mesmo a descoberta do P52 (o mais antigo fragmento do Evangelho de João) nas regiões do Egito favoreceu essa idéia. 2) Antioquia tem sido sugerida por apresentar certas afinidades entre os escritos de Inácio e as Odes de Salomão. 3) A Palestina surge como hipótese apenas pela relação entre o Quarto Evangelho e detalhes culturais e topográficos. Essa dedução, ao ver de Carson (2007, p. 87), seria “estranha em sua aparência”. 4) A idéia de que teria sido composto em Éfeso tem sido a crença mais tradicional. Isso não apenas por evidências históricas, como o uso dos montanistas deste evangelho na Frígia, região próxima a Éfeso, mas principalmente porque nenhuma das outras indicações tem o apoio dos Pais da Igreja: “erroneamente ou de modo acertado, eles apontam para Éfeso” (CARSON, 2007, p. 87). 

Outro problema amplamente discutido acerca do Quarto Evangelho é seu ambiente de composição. Como explicar o aparente fundo grego presente na linguagem do evangelho? C. H. Dodd (2003) e o erudito alemão Rudolf Bultmann (2004) entendiam que a influência gnóstica foi determinante para a escrita do evangelho, sendo que sua linguagem dualista se acha em todo o evangelho. Isso pode abrir um caminho para a hipótese da influência das religiões de mistérios gregas, além de uma datação tardia para este evangelho, considerando que o gnosticismo se torna um problema relevante para a fé cristã somente a partir do século II. Por outro lado, o ambiente do Quarto Evangelho tem sido sugerido como marcado por influências do sincretismo religioso judaico por Cullmann (2003). Ele propôs a existência de um Judaísmo não-conformista, contrário ao Judaísmo oficial, desde os dias do primeiro século. Contra a idéia de uma polarização entre influências de uma religiosidade palestinense ou helenistca (teoria da escola de Tümbingen), como se as duas se excluíssem mutuamente, ele propôs a existência deste Judaísmo sincretista, esotérico, como ambiente religioso do Quarto Evangelho. 

“As duas correntes do judaísmo palestinense, correspondiam provavelmente, embora tivessem sofrido transformações profundas, às duas correntes análogas do cristianismo primitivo da Palestina.” (CULLMANN, 2003, p. 33).  

Tal idéia tem sustento da parte de Carson (2007). Ele apresenta o autor sagrado, como uma testemunha que não sucumbe ao sincretismo, mas que se torna um “pregador talentoso”, que recorre a um “simbolismo rico” para comunicar o testemunho acerca de Jesus Cristo. Destaca a influência de seus escritos bem como de sua teologia, a evidência de uma herança do Judaísmo, o seu conhecimento da Palestina do século I e da cultura e herança daqueles para quem escreve; e acima de tudo, o seu entendimento da pessoa, ministério e obra de Jesus, o Messias, além da compreensão cristã mediada por meio do Espírito na vida da Igreja.

Além disso, a descoberta do papiro P52, datado de 132 d.C. aproximadamente, encontrado em 1935 no Alto Egito bem como os Manuscritos do Mar Morto achados nas imediações de Kilbert Qunram, em 1947, possibilitaram duas evidências para referenciar a época de composição do evangelho e a fonte da linguagem joanina. Em primeiro lugar, considerando a possibilidade de que o evangelho não teria sido escrito no Egito, pelo tempo de disseminação comum dos documentos escritos daqueles dias, para que um fragmento do evangelho alcançasse aquelas regiões, deve-se levar em conta a probabilidade de que este já era conhecido no fim do século I, razão pela qual se tem aceitado com certo grau de consenso que a datação do Quarto Evangelho para o segundo século não seria a mais aceitável. Em segundo lugar, a linguagem altamente dualista do Quarto Evangelho tem um paralelo comum nos escritos de Qumram, supostamente pertencentes aos essênios, uma comunidade judaica com que habitava a Palestina num tempo anterior à queda de Jerusalém (70 d.C.). Alguns escritos desse grupo já refletem um ambiente sincrético, moldado por influências do apocalipticismo e do dualismo grego, ainda nos dias do primeiro século.

Por isso, ao lado de Cullman (2003), HALE (2002, p. 144) tem-se reconhecido agora que “João não reflete um gnosticismo do segundo século, mas os conceitos prevalecentes durante a metade do primeiro século”. Também KÜMMEL (2003, p. 326) não vê identificação da linguagem joanina nem com o paganismo grego, nem com o Judaísmo palestinense, e define este ambiente e linguagem peculiar de João como marcados por “uma gnose judaica”, prevalecente naqueles dias. 

De acordo com o exposto, torna-se possível que a linguagem do Quarto Evangelho seja originária de um ambiente judeu, não gentio. Em vista disso, Carson (2007, p. 61) expõe que atualmente, já se diminui a crença na influência do gnosticismo grego do segundo século para o Quarto Evangelho, e afirma que o background  “fundamentalmente judeu, bem como o do Antigo Testamento (AT) no evangelho de João é cada vez mais reconhecido”. 

Quanto à datação, as possibilidades variam. Kümmel (2003) entende que uma data para o Quarto Evangelho após a escrita do evangelho de Lucas, possivelmente entre os anos 80-90 d. C. Essa datação tem tido apoio de Carson (2007). Hale (2002) acredita numa data por volta do ano 70 d.C., provavelmente antes. E uma vasta maioria (como VELOSO, 1984) crê numa data aproximada ao fim do século I, entre os anos 95-100. Pode se dizer que a proposta de uma datação tardia, já para o século II tem sido rejeitada. 

VELOSO (1984, p. 7-12) afirma que três propósitos possíveis foram sugeridos para a escrita desse evangelho: propósitos “apologéticos” (o combate à heresias), “missionários” (para evangelizar os gregos) ou “pastorais” (orientação de uma elite judaica). Veloso apresenta também uma hipótese de Raymond Brown, para quem o evangelho foi escrito para preservação da história do Cristo e sua compreensão teológica, abrindo-se para inúmeros objetivos, advertindo assim, para que os leitores não se prendam a um objetivo imediato. Carson (2007), todavia, entende que seria exagero supor que pelo fato de que diversas possibilidades estejam abertas para a escrita deste evangelho, todas estivessem na mente do autor. Em sua compreensão, João teria um propósito definido em sua mente.

A opinião de Veloso (1984) tem correspondência com Cullmann (2003) acerca do ambiente de um Judaísmo sincrético, e apresenta o impulso motivador da escrita desse evangelho como uma resposta a esse sincretismo. Desse modo, “o propósito e os destinatários do Evangelho de João estão intimamente relacionados” (VELOSO, 1984, p. 7).  Para o autor citado, a comunidade joanina estava experimentando uma mudança perigosa: 

“Começava a introdução de algumas heresias doutrinárias que provocavam dissensão entre os crentes. Além disso, notava-se a tendência para uma religião formal com prejuízo da vida espiritual e da piedade prática. João compartilhava com os anciãos de Éfeso a preocupação por estas tendências da comunidade, e para ajudar a resolver tais problemas escreveu o evangelho.” (Veloso, 1984, p. 12). 

Para Veloso (1984), é provável é que a fé apostólica no Cristo poderia estar ameaçada pela própria comunidade, que perdia o rumo apontado pelos primeiros cristãos. Para a preservação da fé, João teria escrito o seu evangelho. Desse modo uma ênfase apologética tem sido destacada. Rice (2006, p. 210), destaca que em João, “a mais importante ênfase é a divindade de Jesus”. Devido a isso, tem-se apresentado que ao escrever seu evangelho, seja por motivos apologéticos ou doutrinários, o propósito de João seria comunicar a verdade da natureza divino-humana de Jesus. Seguindo a mesma linha, Carson (2007) acredita que o propósito desse evangelho pode ser encontrado na própria declaração de seu autor que afirma que ele teria sido escrito “para que creiais que Jesus é o Cristo, e crendo, tenhais vida em seu nome” (João 20:30). Propondo um sentido missiológico para sua escrita, ele entende que a base de João é o kerigma apostólico, ou seja, a proclamação da fé no Cristo ressuscitado como Senhor. 

O que se conclui é que o Quarto Evangelho tem despertado diversos questionamentos acerca de sua origem, conteúdo e propósito. A maioria deles se relaciona com seu ambiente de redação. Porém, após breves considerações pode se tirar algumas conclusões. Pode-se dizer que a autoria do evangelho pode ser atribuída com certo grau de certeza ao apóstolo João, filho de Zebedeu. Em segundo lugar, pode-se aceitar o seu ambiente como sendo judeu-cristão no mundo helenista. Escrito em Éfeso, como atestam os Pais da Igreja, embora pudesse ser usado para outros fins, sua intencionalidade seria o fortalecimento da fé e edificação da Igreja por meio do kerigma cristão, a saber, a verdade do seu testemunho acerca de Jesus como Cristo e Senhor. Isso se fez necessário, em vista não somente das ameaças que circundavam a Igreja na Dispersão, mas para a preservação da verdade acerca de Jesus como Senhor e Cristo. Assim, considerando este ambiente circunstancialmente controverso da comunidade joanina, e considerando o conteúdo da proclamação do Quarto Evangelho, há a possibilidade de que a ênfase de João seja um apelo à fé da comunidade no testemunho ocular do apóstolo, fortalecendo-a a fim de que faça frente aos possíveis enganos que viessem a corromper sua fé.

Bibliografia Básica


BORNKAMM, Günther. Bíblia Novo Testamento. Teológica. São Paulo, 2004.

BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Teológica. São Paulo, 2004.

CARSON, D. A. O Comentário de João. Shedd. São Paulo, 2007.

CULLMAN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. Sinodal. São Leopoldo, RS. 2003.

HALE, Broadus David. Introdução ao Novo Testamento. Hagnos. São Paulo, 2002.

KÚMMEL, Georg. Síntese Teológica do Novo Testamento. Teológica. São Paulo, 2005.

RICE, Georg E. Interpretando os evangelhos e epístolas, in: REID, Georg W (Ed.). Compreendendo as Escrituras. Engenheiro Coelho, SP, 2007. p. 205-222. 

VELOSO, Mário. Comentário do Evangelho de João. Casa Publicadora Brasileira. Santo André, SP, 1984.

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