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Belchior: Um Poeta Esquecido


O que teria em comum o ator Johnny Depp, o poeta Mário Quintana, o pintor Van Gogh e o cantor Belchior? A resposta, não tão óbvia, é que embora fossem excelentes em sua maneira de fazer arte, todos eles foram, em grande medida,  injustiçados pelos críticos e pelos "papas" da mídia. Embora tenha atuado em filmes memoráveis, Depp nunca recebeu um Oscar. Mário Quintana foi um dos maiores poetas brasileiros, dono de um estilo único, mas viveu seus últimos anos amargurado pela rejeição da Academia Brasileira de Letras. Van Gogh hoje é um dos mais celebrados artistas do mundo, suas telas valem milhões. Mas quando vivo conseguiu vender apenas um quadro. E para um parente! 

E quanto a Belchior? Talvez seja o maior poeta da Musica Popular Brasileira (MPB) ainda vivo, mas ainda assim, viveu os últimos anos marginalizado pela mídia. Depois de anos sendo ignorado, as atenções só se voltaram para ele bem recentemente,  quando foi anunciado como "desaparecido".

Parece que Belchior, nesse caso, pela sua ligação à poesia como literatura, sofreu no mundo da música da mesma fatalidade que muitos poetas brasileiros sofreram no mundo das Letras. Foi de Affonso Romano de Sant`Anna a denúncia do elitismo "canônico" presente na poesia brasileira como um dos fatores da crise em torno dela, na atualidade. Por um estranho consenso, o marco poético se restringiu à famigerada Semana de Arte Moderna de 1922 e a partir desse evento apenas duas figuras se tornaram o "cânone" maior da poesia brasileira: Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto. Depois disso, muitos poetas foram injustiçados, e apesar de seu talento, nunca foram celebrados e reconhecidos. O que se faz hoje é apenas uma variação estética de dois ramos poéticos divergentes, a poesia "cabeça" (João Cabral) e a poesia lírica  "coração" (Drummond). E nisso, muitas injustiças foram feitas, como aquelas com o Paulo Paes e o citado Quintana.

A mim me parece que o que se deu com o Belchior foi o mesmo que ocorreu com estes bons poetas marginalizados. Grosso modo, o marco inicial da MPB se restringiu aos festivais das décadas de 1960-70. E embora muitos tenham surgido daquele momento histórico, a mídia "canonizou" apenas três figuras, a saber, Caetano, Gil e Chico. Os demais foram esquecidos ou diminuídos em seu papel. Elis Regina, Milton Nascimento, os famosos movimentos como Bossa Nova ou Clube da Esquina, por mais importantes que sejam, sempre foram subordinados ao "cânon" e ao suposto "tempo sagrado", o marco histórico de 1960-70. Em sua canção "Bahiuno" (1993), Belchior parece tecer uma ironia em torno do assunto, quando canta: "Fosse eu um Chico, um Gil, um Caetano e cantaria, todo ufano Os Anais da Guerra Civil [...]"

Pedro Borba escreveu um extenso artigo no qual avaliou a música "Alucinação" (1976) determinando o tom discursivo e a força poética do artista que trazia um estilo revolucionário de fazer poesia cantada. Mas apesar disso, o poeta e cantor viveu a maior parte de sua carreira marginalizado pelos dignatários da mídia "canonizadora". Aliás, é bom que se diga: Há anos, Belchior já não aparecia em programas das grandes redes de TV, não teve nenhum show transmitido em cadeia nacional ou sequer atraiu interesse midiático pelos seus shows ou trabalhos. Mesmo em seu aniversário de 60 anos, foi ignorado. Nenhuma homenagem.

Literalmente esquecido, depois de quase dois anos fugindo dos palcos, como afirma Ivo di Camargo Jr., Belchior só teve sua ausência percebida por conta de uma dívida denunciada em brincadeiras nas redes sociais. A imprensa se deleitou nisso e choveram especulações. E essa foi, de fato, a única importância que lhe deram nos últimos anos.

Não se pode diminuir os ditos "cânones" da MPB. Mas sobre o Belchior, é inegável a grandeza de sua poesia e musicalidade. Merecia ser "canonizado". Como afirma Pedro Borba, sua diferenciação em relação a tantos outros é que ele sempre colocava a poesia em primazia. Sua música, acima de mera "canção" se definia como "letra cantada". Quem duvidar, que leia "Paralelas", "Bahiuno", "Onde Jazz Meu Coração" e outras, sem interferência instrumental. Como expôs em "Alucinação" (1976), já não lhe interessava novas "teorias" ou experimentações, típicas da vanguarda: "Eu não estou interessado em nenhuma teoria /... / nem nessas coisas do Oriente, romances astrais .../ A minha alucinação é suportar o dia-a-dia / e o meu delírio é a experiência com coisas reais..." Era o discurso do homem comum de seu tempo. "Eu sou como você", ele diria, "Jovem que desceu do Norte /.../ E que ficou desnorteado / como é comum no seu tempo / e que ficou apaixonado e violento / Eu sou como você" ("Fotografia 3x4", 1976). A poesia de Belchior se prestou a um discurso e sempre encarnou a realidade do homem em seu chão.

A sua temática se revela mais detalhadamente nos versos finais de "Alucinação" (1976). Depois de afirmar que sua alucinação é "suportar o dia-a-dia" e que seu delírio é a "experiência com coisas reais", a parte final da canção expõe detalhadamente o universo poético de sua composição literária e cantada:


Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver, "- cheira cachorro!"
Os humilhados do parque
Com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!
Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze jovens coloridos
Dois policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida" -
(Alucinação, Polygram, 1976).

Mas "deixando a profundidade de lado", sempre fiquei curioso com o sumiço do Belchior. É um daqueles enigmas existenciais inexplicáveis. Foi de repente. Em 2009, deixou seu carro no aeroporto. Deixou carreira, família, anotações, quadros pintados, seu violão, e até manuscritos de um livro ilustrado de Dante Alighieri que estava escrevendo e saiu em uma especie de fuga existencial. A partir disso, teve litígios judiciais por não ter pago algumas contas, embora em 2010 tivesse cerca de R$ 350 mil em direitos autorais retidos pela justiça por conta da fuga dos compromissos financeiros. A Chevrolet buscou o cantor propondo pagar todas suas contas, resolver todas as suas pendências se ele fizesse um comercial de veículo. Belchior rejeitou. O homem sumiu, tal qual um daqueles que fazem o caminho de Santiago. O que o impediu e impede de voltar? Ninguém sabe. Ele não revelou nem revela. Podemos apenas tecer conjecturas.


Mas seu empresário dá uma pista. Motivos financeiros não eram. Fazia cinco shows em média, por semana,  valor equiparado ao preço exigido pelo  Ramalho. Mas conta que de repente o artista começou a ficar meio calado, taciturno e foi abdicando paulatinamente de seus compromissos, até seu abandono definitivo dos palcos, em meados de 2009.


Penso que o drama de Belchior tenha uma carga existencial. Para quem cantava uma música profundamente intimista e repleta de sentidos, com versos de Bilac e Drummond, alusões a João Cabral, José de Alencar, Guimarães Rosa e Allan Poe,  e que sofria, como disse algumas vezes, vendo a decadência do mercado fonográfico, era certo que um dia se cansasse. Cansou-se de cantar as mesmas músicas? Cansou-se de ser ignorado? 

É de se questionar o fato de um artista que foi comparado ao Bob Dylan, tenha sido resumido constantemente apenas a uma década de produção (anos 70'). O que se nota é que em todas as vezes que se fala da obra do Belchior, fazem menção apenas às composições desse tempo passado, como se ignorassem por completo algumas coletâneas interessantes que vieram depois. Para a mídia, a obra-prima de Belchior permanece sendo o álbum "Alucinação" (1976), mas ignoram outros como "Bahiuno" (1993) no qual há poesias geniais, como "Bahiuno", "Onde Jazz Meu Coração" e "Cinquenta Anos de Quê?". Mas, como disse, ao que parece, ninguém lembra. Aliás, poucos se lembravam da própria pessoa, do Belchior.

Como certo articulista disse, se de repente deram pela falta dele não foi pela saudade de suas poesias, mas sim pela sede de fomentar notícias sensacionalistas. Nos últimos anos, o que a imprensa tem escrito tem menos a ver com a qualidade de sua produção artística do que com as especulações acerca de sua vida pessoal e suas dificuldades financeiras. Ficaram décadas ignorando o Belchior. E agora pedem sua volta. Mas ironia do destino, hoje, é ele quem ignora.

Belchior criou seu estilo próprio. Tentou por décadas fazer literatura cantada, poesia verdadeira. Resistiu à pressão do mercado até quando deu.  Pode ser que ele não volte, como muitos têm sonhado e pedido. Eu mesmo não me interesso em sua volta, nem faço parte da campanha "Volta, Belchior". Mas se Belchior não voltar, pelo menos deixou uma obra inigualável no campo da arte a ser descoberta e investigada pela nova geração, tão intoxicada com os "quadrados de 8" e tantos refrões debochados da música "populesca" e comercial. Aliás, recentemente, li alguns artigos acadêmicos de universitários que estão se voltando para o resgate de sua poesia (aqui, aqui e aqui).

Que a nova geração de amantes da boa poesia descubra o Belchior. E como ele cantava, em "A Palo Seco" (referência direta a João Cabral de Melo Neto), a esse grupo eu digo: espero que seu "canto torto, feito faca corte a carne de vocês". - Claudio S. Sampaio.


Abaixo, uma musica referencial e dicas de pesquisa

1 - Música Alucinação (1976) 


"Alucinação", 1976, no qual o poeta/cantor define sua temática.


Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Nem em tinta pro meu rosto
Ou oba oba, ou melodia
Para acompanhar bocejos
Sonhos matinais

Eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Nem nessas coisas do oriente
Romances astrais
A minha alucinação
É suportar o dia-a-dia
E meu delírio
É a experiência
Com coisas reais

Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver: cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais

Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!

Cravos, espinhas no rosto
Rock, Hot Dog
"Play it cool, Baby"
Doze Jovens Coloridos
Dois Policiais
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida
Cumprindo o seu duro dever
E defendendo o seu amor
E nossa vida

Mas eu não estou interessado
Em nenhuma teoria
Em nenhuma fantasia
Nem no algo mais
Longe o profeta do terror
Que a laranja mecânica anuncia
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais
Amar e mudar as coisas
Amar e mudar as coisas
Me interessa mais


2 - Leituras sugeridas:

13 comentários:

  1. FABULOSO... Muito bom... Belchior vive intensamente o escreve... Simplicidade de ideologias que representam a idade, a cultura... Como isso se repete entre as gerações... A esperança nesses ideias de mudar o mundo... Consigo me encontrar em suas letras e fugir de muitos clichês prontos... Mapa do Tempo, Como nossos Pais, Fotografia 3x4, Paralelas... A obra pode até ser menor que a de outros artistas mas a qualidade e porcentagem beira 100%. Gostei muito da oportunidade e se permitir colocarei em meu blog

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  2. Olá Wiilian

    De fato, soluções prontas, velhos clichês não combinam com o Belchior. Tudo nele é original e surpreendente. Pode ser um Guitar, um Soul, um Blues Man, um Country, tudo nele cabe. Mas ainda que seja tudo isso, ainda é o Belchior, em sua unicidade.

    Sobre copiar, fique bem à vontade. Será uma honra.

    C.

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    1. Prezado Claudio,

      Sua definição sobre Belchior e sua obra é magnífica. Parabéns.

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    2. Olá Márcia.

      Obrigado pelo seu interesse em nosso blog.
      Obrigado também pelo elogio, mas penso que o único que merece os parabéns é o Belchior.
      Abraço.
      Volte a comentar.

      C.

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  3. TROVA DE POETA (A Belchior)

    Quando o poeta solta o verbo
    que sentencia a sua verve
    O sentimento vem à tona
    e a poesia emociona
    Qualquer poema serve.

    Quando o poeta em seu delírio
    faz da palavra o seu ofício
    A obra nasce com requinte
    e o negócio é o seguinte:
    Viver de amor, morrer do vício.


    Por Heldemarcio Ferreira

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  4. Melhor texto que já li na minha vida sobre Belchior! Parabéns

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  5. Amigo, sou Jorge Mello, parceiro do Belchior em mais de duas dezenas de obras. Também produtor de alguns de seus álbuns e fui sócio dele em duas empresas por mais de 20 anos. E posso informar que sou o primeiro leitor de toda sua obra poética, assim como ele foi o primeiro a por os olhos em tudo que escrevi. Lá no início de nossas carreiras, ele morou em minha casa por muitos anos, no Rio de Janeiro. Informo isso só para dizer que adorei o seu texto. E informar também que tenho um acervo de 50.000 documentos originais sobre a aventura da música do Ceará em minha geração e esse acervo é aberto a quem se interessar pelo tema. Muitos acadêmicos estão colhendo documentos para suas monografias, mestrados e teses, aqui. É aberto a todos, exatamente para que se possa contar corretamente essa história... Precisando desses documentos pode contar. Há muito o que se ponderar sobre o tema ainda, e os documentos orientam esse raciocínio. Grande abraço. Repito, seu texto é muito bom!

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    1. Valeu, Jorge Mello,

      Primeiro, muito obrigado pelo seu olhar carinhoso sobre meu texto. Ele nasceu de minha admiração incondicional pelo artista e pelo pesar que me vem pela sua retirada do meio musical. Se pudesse dar uma luz sobre o que está ocorrendo com ele, ficaria agradecido. Só se ouve especulação sobre o caso...

      Além disso poderia colocar aqui o endereço eletrônico de contato ou outro possível para quem se interessar entrar em contato contigo.

      No mais, fica meu abraço.

      Volte a visitar este espaço.

      Ah: tem uma poesia que escrevi para ele também, nesse blog: "A Belchior". Acesse lá. (http://pastorclaudiosampaio.blogspot.com/2015/02/a-belchior.html)

      C.

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  6. Oi Cláudio. Fiquei simplesmente tocada com suas colocações. Não sou uma conhecedora por completo da obra de Belchior, diria que sou uma pessoa que sente esta obra. Mas posso dizer que vejo, e me emociono com os jovens de hoje, que ao conhecer as músicas de Belchior, são imediatamente "abduzidos" por amor, questionamentos e curiosidade. Vi isso acontecer com meu filho, meu sobrinho e amigos deles... É incrível! Belchior para mim é um verdadeiro poeta e nunca esteve tão presente no cenário cultural e musical. Aqui em Fortaleza por exemplo, está acontecendo um evento em comemoração ao aniversário dele: Belchior Sete zero, onde poesia, literatura e música, se misturam para homenagear esse homem tão complexo. Parabéns pela matéria. Devidamente compartilhada. Abraços.

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    1. Olá Cicera, hoje é dia triste para vocês. Uma perda irreparável na arte brasileira. Quem pega o "bastão"? A música brasileira fica mais pobre. Abraço. Volte a comentar.

      Att

      C.

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  7. Muito bom lê o seu texto! Não tenho como descrever os meus sentimentos...mas quando escuto as musicas e leio as letras de Belchior me sinto acolhida...me identifico e acho que compreendo a sua mensagem. Parabéns pelas palavras! Que justiça seja feita!

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    Respostas
    1. Olá Verônica.

      obrigado pelo comentário.
      Como vê, Belchior não voltou. Foi para mais longe.
      Mas a música dele ficou para quem apreciava.
      Volte a comentar.
      Att

      C.

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  8. Chorei lendo o texto cara, nunca senti tanta admiração por obras quanto sinto pelas dele. Conheci Belchior em 2017 após sua morte e lamentei não ter conhecido antes.

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