Header Ads

O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã: Um Estudo Hermenêutico Sobre Revelação e Inspiração - Resenha Crítica

Obra Analisada:  “O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã: um estudo hermenêutico sobre Revelação e Inspiração”. 1a. Edição. São Paulo: UNASPRESS, 2011. 420 páginas.


Fernando Canale, argentino, é um erudito respeitado no meio acadêmico. É também docente da Universidade Andrews, EUA, com licenciatura em Filosofia e PhD. em Teologia. Além disso, é escritor prolífero e suas obras têm sido revolucionárias no campo da  Teologia, à luz da hermenêutica contemporânea. A obra O Princípio Cognitivo da Teologia Cristã, UNASPRESS, 2011, é um de seus mais recentes trabalhos lançados no Brasil. Foi publicado primeiramente nos EUA, com o título “The Cognitive Principle of Christian Theology: A Hermeneutical Study of The Revelation and Inspiration of The Bible” e traduzido para o português por Neumar de Lima. A obra possui 420 páginas, incluindo a parte bibliográfica, na qual constam mais de 90 obras consultadas.

Bem antes do presente volume, Canale escreveu diversos artigos, e além de outras obras em inglês e espanhol, foi autor de dois longos artigos sobre Divindade e Cristologia no Tratado de Teologia, da série Logos, pela Casa. Além disso, foi autor de "Criação, Evolução e Teologia: Uma introdução aos métodos científico e teológico", também publicado no Brasil pela UNASPRESS no ano de 2014. Sobre a temática, Canale publicou outros dois livros que abordam o conteúdo do livro em análise: An Critiscism of Teological Reason: time and timelessness as primordial pressupositions (1993) e Back to Revelation-Ispiration: searching for the cognitive fundations of christian teology in a postmodern world ( 2001). E mesmo diante da importância de seus trabalhos anteriores, pode-se afirmar que a palavra que resume a obra em análise seria “revolucionária”. O erudito Norman Gulley, docente da Andrews, a definiu como um "clássico" que trará um "impacto" significativo sobre os estudos posteriores relacionados ao tema. Richard M. Davdson, PhD. afirma por sua vez que a obra de Canale, definida como "fundamental, original e sem precedentes, chegou com quase dois mil anos de atraso"!


Neste estudo, Canale se dedica a apresentar uma intensa aula  de Teologia Histórica, quando discorre acerca da problemática em torno da Hermenêutica bíblica, desde os primórdios da Teologia como disciplina acadêmica. Trata-se de um livro primoroso e único. Trata-se de uma busca de "agiornamento" da Hermenêutica bíblica, na construção de um modelo adequado aos novos tempos. O principal problema analisado pelo autor é: as Escrituras possuem valor cognitivo? Por cognição se entende a capacidade de adquirir conhecimento. Se como muitas vezes tem-se propagado, as Escrituras são apenas produto de uma cultura antiga, e não portadoras de verdades objetivas, seria impossível alcançar algum conhecimento de verdade através dela, de modo que tudo cairia no relativismo. Frente aos novos questionamentos da pos-modernidade, os teólogos de modo geral se recolheram com suas velhas teorias sobre Revelação e Inspiração. Nesse contexto, surge a obra de Canale: ela se torna um proposta renovada acerca do tema para os dias atuais. 

Acerca da estrutura, a obra possui três Unidades divididas em vinte capítulos. Foi escrita em estilo descritivo, seguindo um método de análise comparativo. Em suma, o objetivo do autor é proceder a uma análise e desconstrução dos modelos hermenêuticos populares a fim de estabelecer um novo modelo que ele considera mais adequado à hermenêutica contemporânea, com base especialmente em Gadamer, discípulo de Heidegger. Tal modelo, proposto pelo autor seria o chamado Histórico Cognitivo.

Na Unidade 1 (p. 15-106) composta de seis capítulos e intitulada Fundamentos, Canale busca definir os fundamentos da Hermenêutica como disciplina acadêmica e a problemática que se relaciona ao tema de seu livro. Para o autor, o grande problema envolvendo a hermenêutica bíblica e seus modelos gira em torno da carência de uma teologia da Revelação-Inspiração (R-I) sem a qual, segundo ele, não se poderia afirmar a autoridade das Escrituras. Assim, uma verdadeira doutrina de R-I deve ser estabelecida antes de qualquer prática teológica relacionado à hermenêutica. Confrontando a proposta de uma Revelação Geral "natural" como toda-suficiente, Canale inicialmente expõe a teoria do conhecimento com base nas propostas atuais, reforçando a perspectiva do relacionamento sujeito-objeto como elementos fundamentais (relacionamento cognoscível). Segundo o autor, qualquer conhecimento verdadeiro deverá ser construído numa via dupla: entre o sujeito cognoscente (capaz de obter conhecimento) e objeto cognoscível (capaz de comunicar conhecimento). 

Após confrontar o paradigma filosófico grego e sua influência sobre o Cristianismo, Canale expõe a dificuldade trazida para o campo da Hermenêutica bíblica, sob influência do discurso platônico que, em suma, distancia o mundo material das realidades divinas, impedindo uma comunicação cognoscente entre a Divindade e o ser humano. Para o autor, o problema maior é que toda a estrutura hermenêutica do cristianismo está impregnada com o dualismo grego. Desse modo, ele se dedicará a trabalhar com um processo de avaliação e desconstrução hermenêutica através de um estudo comparativo dos modelos que foram gerados pelo paradigma da filosofia Clássica. E sua busca é encontrar o modelo que mais estaria adequado segundo os questionamentos da hermenêutica pós-moderna e o discurso das  Escrituras.

Na  Unidade 2 (p. 107-200) composta de cinco capítulo e com o título Modelos de Interpretaçãoo autor expõe de maneira concisa como os fundamentos da Filosofia Clássica, a saber, a perspectiva da "atemporalidade de Deus"  versus "temporalidade humana"  influenciariam o pensamento teológico e estabeleceriam as bases da Hermenêutica bíblica no decorrer da história. Conforme o discurso filosófico Clássico, ditado pelo pensamento platônico/aristotélico, a dicotomia entre Deus/homem / céu/terra em sua alienação mútua só seria superada pela ideia platônica da "alma". Basicamente, a proposta da Hermenêutica Clássica seria: se Deus é atemporal, não pode irromper no continuum histórico fechado do tempo humano, de modo que apenas por meio de um elemento supostamente "atemporal" presente no homem, sua "alma", poderia haver a possibilidade do contato da criatura com a Divindade. A razão humana não pode apreender as revelações divinas, de modo que na esfera sobrenatural e em contato com a "alma" do escritor bíblico, Deus infunde uma capacitação especial à sua mente, concedendo-lhe Sua revelação. Assim, não haveria revelações objetivas de Deus, somente impressões na mente por meio da alma dos autores das Escrituras. A partir daí, o autor demonstra como estes pressupostos hermenêuticos da filosofia grega governaram toda a hermenêutica cristã desde os dias do Cristianismo pós-apostólico, passando pelo período medieval  até o Iluminismo, a partir de quando se formarão duas correntes de pensamento opostas, a Moderna (Liberal) e a Evangélica (Fundamentalista).

Para Canale, se os principais influenciadores da hermenêutica dita Clássica foram Aristóteles e Platão, no período Moderno surgirá a figura de Immanuel Kant, com sua "Crítica à Razão Pura". Pela influência do discurso de Spinoza e Descartes, o cientificismo e o racionalismo irão influenciar a Teologia dos novos tempos. Com a chegada do empirismo, estava formada a base da ruptura do pensamento moderno com os pressupostos fundamentais da filosofia grega. Canale afirma que para Kant, a razão humana seria a única que poderia compreender o mundo das coisas, mas a percepção humana atingiria somente seu "invólucro exterior". Dessa forma, a "essência" das coisas, a alma humana e a pessoa de Deus não poderiam ser entendidas porque são realidades que se situam além da razão e deveriam ficar fora da investigação, porque estavam além do conhecimento humano. Mas ficava questão: se de fato a razão não poderia alcançar a essência das coisas e a revelação divina, como seria possível a revelação das Escrituras?

Diante dessa ruptura de paradigmas, Canale apresenta a figura de Friedrich Scheleiermacher, que inaugura a essência da Hermenêutica Liberal. Para Schierleirmacher, se a Divindade é atemporal (como a Teologia Clássica e Medieval afirmava) e está além da razão (como Kant afirmava), não estaria,  entretanto, alienada dos sentimentos. Por meio dessa argumentação, Scheleiermacher criará uma estrutura teológica que seria definida como Teologia do Encontro. Segundo essa perspectiva, Deus não revelou verdades específicas para seus profetas, mas eles tiveram apenas arrebatamentos de sentidos, encontros experienciais, com a Divindade. Assim, as Escrituras seriam apenas uma transcrição dessas experiências, ou seja, uma soma desses “encontros”. A Bíblia seria apenas um livro humano, que ao ser lido, poderia proporcionar um "encontro existencial" do leitor com a pessoa de Deus. A "Palavra de Deus" seria encontrada a partir da experiência individual do leitor com a palavra escrita, nas Escrituras. É diante deste cenário histórico que brotará a hermenêutica evangélica conhecida como Fundamentalista, que não apenas se torna uma reação contra o classicismo tomista da Idade Média, como também uma resistência contra a nova Teologia definida como Liberal

A crítica de Canale contra o evangelicalismo Fundamentalista, é que ao invés de resolver os problemas em torno dos pressupostos que governavam os dois sistemas hermenêuticos com base no dualismo, este modelo se tornou também vítima do mesmo impasse, ao se tornar cativo dos pressupostos gregos. Para Canale, três bases sustentam a hermenêutica evangélica: 1). A atemporalidade de Deus que o impede de travar contato com a realidade temporal; 2). A degradação da raça que impede ao homem de estabelecer contato com a Divindade; 3). A soberania de Deus que age de forma exclusiva e transmite sua revelação sem a interferência humana. Com base nesses dados, ele expõe a dinâmica da revelação segundo o pensamento evangélico: dada a atemporalidade de Deus e a degradação humana, a revelação divina será possível somente pelo elemento puro e atemporal do homem, sua alma, que se eleva a Deus e recebe dEle Suas verdades. Nesse processo, Deus é soberano e não há participação humana, sendo que o homem, dada sua corrupção, tenderia a corromper a revelação, de modo que o seu conteúdo é totalmente "divino, e por isso, "inerrante". 

Como dito acima, toda a hermenêutica evangélica desse grupo se orientará como uma apologia contra o discurso dito Liberal, sem todavia, confrontar a herança platônica da Hermenêutica ClássicaApesar desse litígio hermenêutico entre as duas correntes, para Canale, a problemática da dependência dos pressupostos gregos nunca foi resolvida, porque todos os modelos desde seu começo, trabalharam com a mesma perspectiva: a dicotomia entre o ser e a realidade histórica, que tem sua base na afirmação platônica da atemporalidade de Deus. Assim, os pressupostos de todas as correntes sempre foram com base na ideia grega da natureza de Deus, que sendo atemporal, não poderia se relacionar com o ser humano temporal, dentro de seu "continuum histórico fechado". Tal fato, como se entendia,  afetaria o conceito da "eternidade de Deus".

Posto deste modo, Canale estabelece que se de um lado a corrente intelectualizada (Liberal) irá demitizar a Bíblia, por outro lado, a corrente evangélica (Fundamentalista) irá divinizá-la.  Com base nisso, para os dependentes desses modelos, de fato, não haveria uma possibilidade de comunicação divina de forma "cognitiva". A questão que se levanta é: haveria a possibilidade de uma nova hermenêutica? Depois de proceder a uma desconstrução hermenêutica, Canale partirá para a parte mais densa de seu trabalho, quando irá construir as bases de sua nova proposta, o modelo Histórico-Cognitivo.

Na Unidade 3 (p. 201-410) e composta de nove capítulos, intitulada O Modelo Histórico Cognitivo, o autor avalia a basicamente a "virada pós-moderna e a possibilidade de um novo modelo". Parte da chegada do pós-modernismo sob a influência de Heidegger, com sua obra “O Ser e o Tempo" e de seu pupilo, Hans-Georg Gadamer. Com base neles, afirma os fundamentos de uma nova perspectiva hermenêutica. O pressuposto desses filósofos tinha sua base na ideia de que não existe nenhuma objetividade na filosofia ou na ciência modernas, como afirmado pelos seus expoentes, tais como Descartes, uma vez que todos vão em busca do conhecimento armados de "pressupostos". Ao avaliar a dificuldade de uma perspectiva para os novos tempos, Canale vê a necessidade de uma hermenêutica contemporânea adequada às novas críticas do pós-modernismo. A partir daqui, ele desenvolverá uma revolução de pensamento com base na hermenêutica de Gadamer, tendo como referencial aquilo que ele definirá como "hermenêutica pós-moderna". 

Canale afirma que na ótica de Gadamer, discípulo de Heidegger, no modelo moderno, toda busca de conhecimento acerca de qualquer objeto tem sua base nos "pressupostos" do pesquisador. O problema observado é que os "pressupostos" dependerão de uma história de vida e de um contexto cultural particular próprios de cada observador. Se os "pressupostos" variam de pessoa para pessoa e de experiências pessoais, Canale se pergunta: como uma verdade acerca de um objeto poderá ser encontrada? Nesse ponto se apresenta a proposta de Gadamer. Para ele, numa relação cognitiva sujeito-objeto, as únicas pressuposições válidas deveriam ser aquelas que surgirem do próprio objeto cognoscente (objeto em análise). A melhor opção para buscar a verdade seria "estabelecer nossas pressuposições a partir das próprias coisas", sendo que na opinião de Gadamer, essas "coisas" seriam os "textos em questão" (p. 289). Com base nisso, Canale afirma: para ser objetivo em sua pesquisa, o ente cognoscível (pesquisador) deverá obter os dados do próprio objeto de estudo, ou, ao contrário, ele irá apenas impor suas próprias pressuposições e influenciar toda a percepção da verdade acerca do objeto.

Aplicando ao estudo das Escrituras e à necessidade de pressupostos hermenêuticos coerentes, Canale afirma que para entendê-las, o pesquisador deve primeiro conhecer a "natureza do objeto" e o que ele  afirma sobre si mesmo. Nesse caso, o objeto, a Bíblia, se torna a única autoridade para definir o que ele é e como foi constituído. Desse modo, Canale propõe que cabe aos teólogos alijarem-se dos pressupostos filosóficos gregos e iluministas estabelecidos a priori e se dedicar a construção de uma hermenêutica com base naquilo que define como doutrina da Revelação-Inspiração. Segundo o autor, "a teologia cristã não precisa da interpretações clássicas nem modernas e, com efeito, nunca precisou" (p. 244). Ele irá demonstrar que segundo as informações das Escrituras, não existe uma ligação de uma alma atemporal com um Deus atemporal, e sim, um Deus pessoal e eterno que se torna temporal ao entrar no “continuum histórico” humano para "encarnar" sua mensagem. O que de fato Canale propõe é uma teologia da “verdade encarnada”: a Bíblia é a palavra de um Deus perfeito encarnada em uma palavra humana imperfeita. Nesse ponto, ele apresenta a doutrina da Encarnação de Jesus como fato determinante e para a aceitação da proposta de que Deus pode se tornar temporal para comunicar-se com a humanidade. A Bíblia, à semelhança de Jesus, é uma palavra encarnada e seria tanto divina quanto humana. E este pressuposto básico encontrado nas Escrituras ditará a estrutura do modelo Histórico-Cognitivo.

Ao buscar expor o que ele apresentará como Modelo Histórico-Cognitivo, Canale afirma que não busca reivindicar "originalidade" para o modelo, pois "embora essa expressão específica seja nova", o modelo pode ser definido como "uma sistematização de uma variedade de conceitos defendidos por cristãos no decorrer da história" (p. 247). 

Pelo menos três bases principais sustentam o modelo proposto. Em primeiro lugar, a convicção de que a realidade é temporal e histórica,  e não atemporal, como propõem os modelos Clássico, Moderno e Evangélico. E isso corresponderia não só ao conceito pós-moderno, como também à verdade das Escrituras (p. 246). Em segundo lugar,  contrário aos demais modelos, propõe que deve haver uma primazia da Revelação sobre a Inspiração. Também afirma a realidade de uma "dupla autoria" das Escrituras, ao enfatizar que o escritor bíblico também participa com sua própria fala, cultura e sotaque, na exposição do conteúdo da revelação, embora, ao escrever o material inspirado, aja sob a inspiração do Espírito.  

Ao discorrer sobre os "modos" da revelação divina, Canale por assim dizer, demonstra a grandeza da "condescendência divina" e traz Deus para mais perto. Como afirmado acima, para ele, não cabe ao intérprete das Escrituras, com os pressupostos impostos pela Filosofia, afirmar sua opinião sobre "como" Deus se revela; importa o que a própria Escritura afirma sobre si mesma para se chegar à verdade sobre Deus e a revelação. E para Canale, as Escrituras mesmas dirão que Deus Se revela de "muitas maneiras" (cf. Hb 1:1-3) e não de uma só forma, como diziam os teólogos Clássicos (Deus desce até a alma do profeta e concede dotação especial à sua razão) ou os Liberais (um êxtase de sentimentos ou uma experiência emocional) ou os evangélicos Fundamentalistas (elevação da alma e inerrantismo). Para ele, como as próprias Escrituras expõem, no processo da revelação Deus se introduz na história humana como um Deus temporal e fala de "diversas maneiras", de formas "diretas" e "indiretas", numa diversidade de “padrões” de revelações. Os autores inspirados "vivenciaram essas fontes de revelação pessoalmente no tempo e no espaço" (p. 258). 

Nas Escrituras, de acordo com o autor, há uma variedade de "modos" por meio dos  quais Deus fala:1) pelas impressões históricas acerca das ações divinas na história como as narrativas das crônicas históricas e dos Evangelhos; 2) pelas teofanias, quando a Divindade se materializava para dialogar com seus servos; 3) pelas experiências existenciais tais como as experiências de tristeza e quebrantamento, como no Salmo 51; 4) pelos testemunhos de reflexões sapienciais acerca do mundo e do ser, como em Provérbios e Eclesiastes; 5) pela comunicação verbal, tal qual na entrega da Lei; e 6) pelo profetismo, marcado pelos sonhos e visões. Em sua maior parte, de acordo com Canale, não houve experiências "supra-naturais", mas houve sempre uma interatividade entre de Deus e o ser humano, e no processo, Deus atua não apenas provendo Sua revelação, mas também guiando e supervisionando a escrita do documento sagrado, processo que Canale definirá como Inspiração. No fim, o que se tem é uma multiplicidade de modos de Revelação e um só modo de Inspiração, que ocorrem no tempo dito "histórico". Para ele, os escritores da Bíblia eram de fato degenerados pelo pecado, como afirmam os fundamentalistas evangélicos, mas eles também foram restaurados pela graça de Deus que os transformara em "homens santos" (2Pe 1:21). Como dito sobre o profeta Elias, eram homens "semelhantes a nós" (Tg 5:17), mas por outro lado, foram perdoados e habilitados pela graça, para receber a Palavra de Deus.

A parte final da obra se dedica expor questões de ordem epistemológica, explicando o impacto do Modelo Histórico-Cognitivo sobre o "fazer Teologia". O modelo confronta o inerrantismo fundamentalista, não nega a possibilidade de falhas na Bíblia e nos autores bíblicos, e ainda desconstrói os pressupostos do método Histórico-Crítico, deixando apenas a possibilidade de aproveitamento de alguns de seus recursos.

A esta altura, gostaria de elogiar alguns pontos da obra. Trata-se de um documento primorosamente elaborado. Há uma busca quase que milimétrica de detalhes em toda a sua extensão. De modo especial, destaco a didática do autor, que caminha devagar em suas argumentações que chegam sem adiantamento nem tardança à mente de pesquisador. O desenvolvimento dos capítulos é bem elaborado e segue uma sequência lógica e progressiva. Há uma riqueza de ilustrações, com gravuras que traduzem de forma sintética o conteúdo apresentado. Além disso, o autor discursa como se estivesse em uma classe com seus alunos, preocupado em fixar sua matéria. Nesse processo, se utiliza de farta repetição, avaliações e sínteses ao fim de cada capítulo, tornando as ideias sempre muito claras para o leitor. Outro ponto elogiável é o fato de que em nenhum momento há uma demonização dos modelos em análise ou de seus proponentes, mas os situam na busca progressiva de uma melhor compreensão do modo como Deus se revelou nas Escrituras. Talvez a grandeza maior do livro seja a ênfase na verdade de que a Teologia não precisa ficar refém ou agir sob dependência da Filosofia. Para Canale, urge uma libertação dessa impostura, para que se alcance uma autêntica perspectiva da revelação bíblica. Para o autor, o modelo só se tornou possível "precisamente graças a uma modificação na maneira como compreendemos Deus. Essa modificação não está fundamentada em novas elucubrações filosóficas, mas em antigos ensinos bíblicos" (p. 380). Só este pensamento por si só já desafia a todos os pressupostos hermenêuticos vigentes a abre a possibilidade da aceitação da novidade proposta.

Embora seja algo raro em qualquer obra escrita, a mim me parece que o livro não possui pontos negativos. Mesmo em sua diagramação, com fontes e espaçamentos adequados, a obra segue beirando a perfeição. Observo apenas que o autor poderia ser mais claro na sua perspectiva acerca do "Teísmo Aberto", bem como dos limites da aproximação desse conceito teológico para com o modelo Histórico-Cognitivo. Além disso, faltam mais detalhes sobre o modo como este modelo se relacionará com a escola crítica e de como fará uso de seus recursos, embora seja praticamente  independente da mesma.

Concluo afirmando que a obra de Canale precisa ser seriamente avaliada por todos aqueles que se dedicam ao processo de leitura e interpretação das Escrituras, especialmente no ambiente acadêmico. A perspectiva revolucionária de seu modelo está sintetizado numa proposta pós-moderna de desconstrução e construção, abrindo possibilidades de um novo modo de fazer Teologia com base no diálogo entre as correntes alternativas, embora respeitando acima de tudo, o discurso das Escrituras sobre elas mesmas. 

O livro possui apenas 420 páginas. Mas como Canale mesmo confessa, é apenas uma síntese de seu pensamento. Uma exposição completa da grandeza de seu modelo abarcaria vários volumes. Mas se for bem acolhida, sua proposta afetará significativamente  todos os campos da Teologia, inclusive uma "reinterpretação" da Teologia Sistemática.

Recomendo! - [Claudio S. Sampaio].

http://pastorclaudiosampaio.blogspot.com

Nenhum comentário

Sua opinião é importante para mim. O que você pode acrescentar? Entretanto, observe:

1. Os comentários devem ser de acordo com o assunto do post.
2. Avalie, pergunte, elogie ou critique. Mas respeite a ética cristã: sem ataques pessoais, ofensas e palavrões.
3. Comentários anônimos não serão publicados. Crie algum nome de improviso para assinar o escrito, caso não queira se identificar.
4. Links de promoção de empresas e sites serão deletados.
5. Talvez seu comentário não seja respondido imediatamente
6. Obrigado pela participação.