Palavras-chave: Jesus e o jovem rico, perfeição cristã, teleios significado, espiritualidade cristã, teologia evangélica, reforma protestante, justiça de Deus, seguir a Jesus, Martinho Lutero, salvação pela fé
O Desafio
As palavras de Jesus ao jovem rico, registradas em Mateus 19.21 — “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-me” — são uma janela aberta para o âmago do evangelho. Elas não são mero conselho ético, nem apenas uma provocação moral. Elas expressam o centro da espiritualidade cristã: a vocação radical ao seguimento. E, ainda mais profundamente, revelam o que significa ser humano à luz do Reino — não um esforço para alcançar uma virtude inalcançável, mas um reencontro com nossa finalidade.
É fundamental compreender que Jesus não usava a palavra “perfeito” (grego: teleios) nos moldes modernos da irrepreensibilidade. Ele próprio, ao iniciar o diálogo, desarma qualquer tentação de meritocracia espiritual ao afirmar: “Por que me perguntas sobre o que é bom? Bom só há um: Deus” (Mt 19.17). Ele define a bondade absoluta como prerrogativa do próprio Deus. O termo teleios carrega, no seu uso neotestamentário, o sentido de algo que alcançou sua plenitude, que atingiu seu fim (do grego telos), que está ajustado à sua finalidade. Não se trata da perfeição no sentido de infalibilidade, mas de inteireza, de integridade. Como bem observa Tomás de Aquino, “a perfeição do homem consiste em alcançar o fim para o qual foi criado, que é Deus”.
Essa compreensão se enraíza nas próprias linguagens da Bíblia. No hebraico, a raiz chata’ (חָטָא) — usada para pecado — significa “errar o alvo”. No grego, hamartia tem o mesmo sentido: desvio do propósito. E no latim, peccare carrega a imagem de um escorregão, uma queda no caminho. Todas essas palavras têm como pano de fundo a perda de direção. Jesus, portanto, ao usar teleios, está apontando não para um grau ético, mas para um reencontro com o alvo. A perfeição, então, não é algo que se conquista; é algo que se recebe no encontro com o Cristo, que é, segundo João, “o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim” (Ap 22.13). Ele é o fim porque é a finalidade de tudo. Nele, encontramos o que somos chamados a ser.
Nesse sentido, a proposta de Jesus não é uma nova lei, mas um novo centro. O jovem já guardava os mandamentos. Era exemplar na moral, disciplinado na ética. Mas ainda faltava-lhe aquilo que Bultmann chamou de “existência autêntica” — o salto da obediência para o seguimento. Porque, no fim, o que define o cristianismo não é um código, mas um chamado. A frase “segue-me” não é uma regra adicional: é o abandono de todas as regras como fim em si mesmas, e a entrega total da existência ao Cristo vivo. Como bem escreveu o teólogo Karl Barth: “Não é possível seguir a Cristo pela metade. Segui-lo é entregar tudo, porque nele está tudo.”
A resposta de Jesus é desconcertante porque exige mais do que ação — exige deslocamento interior. Jesus não disse: “Faz mais.” Disse: “Entrega tudo.” E esse “tudo” não era apenas riqueza material, mas o símbolo da autossuficiência espiritual. O jovem confiava que sua observância o levava ao Reino. Mas o Reino não é recompensa por mérito; é dom para quem renuncia a si mesmo. Bonhoeffer, refletindo sobre esse chamado, afirmou: “Quando Cristo chama um homem, chama-o para morrer” — morrer para seu controle, para seu mérito, para sua falsa segurança.
É aqui que a história de Lutero ilumina com força a crise desse jovem. Durante anos, Lutero tentou alcançar a paz por meio da obediência mais estrita à lei monástica. Subia escadas de joelhos, confessava compulsivamente, jejuava, se autoflagelava. Mas seu coração permanecia inquieto. Até que, ao ler Romanos 1.17 — “O justo viverá pela fé” —, ele viu os portais do paraíso se abrirem. Descobriu que a justiça de Deus não é um padrão inatingível, mas um dom gracioso que justifica o ímpio. A perfeição, então, é encontrada não no esforço de cumprir, mas na fé que recebe. Essa descoberta o levou à convicção do sola fide e do sola gratia, fundamentos da Reforma Protestante: é somente pela fé, somente pela graça, e somente em Cristo que somos reconciliados com o fim que havíamos perdido.
Mas mesmo hoje, muitos ainda vivem como Lutero: apegados a uma espiritualidade disciplinada, mas vazia. Escutam o chamado, mas não respondem ao “segue-me”. Continuam a peregrinação ética, mas sem direção espiritual. Cristo é o seu lugar de chegada.
No judaísmo rabínico, há uma expressão para os pobres de espírito que vivem da Torá com sinceridade e esperança: os anawim. São os humildes, os que dependem de Deus. Jesus os toma como bem-aventurados, porque neles já opera a dinâmica do Reino: a dependência. O jovem rico, por outro lado, é a figura daquele que tem tudo, mas não tem a Deus. Ele vai embora triste não porque ouviu demais, mas porque não quis deixar de ser senhor de si. E aqui reside o drama: a lei que ele cumpria nunca exigiu sua alma; Cristo sim.
A pergunta que o jovem fez — “O que me falta ainda?” — é uma pergunta legítima. Mas sua resposta não estava em um novo mandamento. Estava em uma Pessoa. “Segue-me.” Esse é o passo decisivo. Não para completar uma lista, mas para abraçar o fim: Cristo. Nele, e somente nele, está a inteireza. Ele não apenas aponta o alvo. Ele é o alvo. Ele é o fim da lei, como escreve Paulo em Romanos 10.4, para justiça de todo aquele que crê. E é por isso que toda experiência de fé só é completa quando ele é o centro.
Concluindo
O jovem partiu triste. Não por ignorância, mas por resistência. E essa resistência ecoa em cada geração. Quantos hoje seguem servindo ao código, mas não ao Cristo? Quantos ainda vivem na ilusão de que basta fazer mais para ser aceito, quando tudo o que o Evangelho exige é: “Vem e segue-me”? A perfeição que Deus deseja de nós não é a dos impecáveis, mas a dos entregues. Ele não busca os que acertam sempre, mas os que não desistem de caminhar com o Filho. Porque é somente nele — e nunca fora dele — que nossa vida se torna inteira.
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