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Sobre Teólogos, Políticos e Gregos: re-pensando teologia e política na prática do ministério pastoral

O que significa quando digo que sou político e cristão?



Por: Cláudio Sampaio
Pastor em Taiobeiras/MG

Hoje eu pensei em falar da política. Mas antes gostaria de relembrar uma aula em que o meu saudoso Professor Milton Torres lamentava a confusão que às vezes fazemos quando aplicamos alguns termos gregos em nosso dia-dia. Na ocasião, ele deu vários exemplos positivos, mas lamentou alguns equívocos. Como exemplo, disse sobre uma falha linguística no campo da medicina quando na rejeição do termo “autopsia” para o exame de cadáveres, dando preferência à palavra “necropsia”. Isso porque o sentido mais comum de “autopsia” tem sido destacado como “exame de si mesmo”.

Contudo, para o Professor, o primeiro termo seria o mais adequado, pelo fato de que a palavra teria um significado mais rico e mais claro devido o seu sentido existencial e filosófico original. Isso porque os médicos de antanho não confiavam na opinião de terceiros, nem mesmo na de seu próprio paciente na descrição da doença, preferindo antes, uma autopsia (para o Professor, um “exame com os próprios olhos”). Desse modo, a preferência no uso do termo “necropsia” (“exame do corpo morto”), em lugar de “autopsia” se fundamentaria numa falsa compreensão do sentido existencial e filosófico da palavra e da prática para aqueles que a originaram. Para o Professor Milton, não seria um erro dizer que o legista estaria se examinando ao examinar o morto, pois no exame do corpo morto, ele expunha diante de si mesmo a fragilidade da vida e do ser humano que ele era.

Essa confusão em torno do signo e seu significante me faz pensar na grande distância que às vezes existe e que nem sempre transpomos, entre a palavra e seu sentido. Pois bem, neste dia que antecede o dos mortos , enquanto repensei a afirmação do saudoso Professor, me aventurei a repensar o sentido da política. 

Seria demais se eu me declarasse político? Digo isso porque cada vez que alguém me envia alguma informação sobre política (e quantas vezes me vi eu mesmo nessa prática!), sempre vem acompanhada de uma apologia: "quero que saibam que não sou político...". E também digo isso porque basta que um ministro religioso se interesse em política que já se tem da parte de muitos, uma dose de má impressão e desconfiança. Qual seria o porque desse comportamento? Considero que essa mentalidade se deve, de modo especial a dois discursos que influenciaram fortemente o movimento cristão desde o período pós-apostólico para que formasse uma visão negativa em relação à política.

Um desses pensamentos é a noção de que o mundo material é intrinsicamente mau, e como cristãos, é nosso dever viver uma separação dessse mundo. Segundo essa linha de pensamento iniciada por Platão (328-437 a.C) e desenvolvida por Plotino (205 – 270 d.C.), o mundo seria um ambiente maligno, governado pelos demônios e fonte de toda tentação e pecado. Deus transcende o mundo, e em sua relação com a Divindade, o cristão deve então, fugir do mundo. Seguindo esse discurso, na busca de fugir da atmosfera pecaminosa do mundo material, muitos cristãos olham para a política como algo nocivo, mundano, profano e demoníaco. A política trataria da ordem das coisas deste mundo, e por isso, tratar-se-ia de uma ciência pecaminosa e detestável aos olhos de Deus.

Esse pensamento se acha arraigado em nossa cultura desde muito tempo. Em seu estudo sobre demonologia no período colonial, após apresentar o catolicismo europeu do século XVI como originador do cristianismo colonial na América do Sul, Maximiliano Salinas cita o que ele define como "peculiar obcessão satânica" (in: Richard, 1987, p. 419) no colonialismol sul-americano. Uma dessas conotações satânicas estaria ligada às questões políticas, quando no Chile "a demonologia popular denunciou também o poder como uma instância satânica" (in: Id., p. 427). Poderíamos dizer que no Brasil, o caso se deu de outro modo? Penso que não.

Outra razão seriam as conotações negativas em torno da palavra política, disseminado pela mídia; e isso, devido ao comportamento questionável de tantos políticos ditos profissionais de nossos dias. Mesmo que os escândalos e abusos de poder estejam presentes na história humana em todos os tempos e lugares, nos dias atuais, é fácil notar uma incontável série de escândalos envolvendo os líderes da nação. Digo que sou consciente da conotação vulgar que o termo carrega no senso comum e seu impacto sobre a consciência cristã.

Mas a verdadeira política não é tudo aquilo que vemos e ouvimos nos telejornais ou na mídia impressa de cada dia. Também não se pode classificar a política como uma ciência diabólica da qual os cristãos devem fugir com o risco de sacrificar sua espiritualidade. Sim, de alguma forma, os profetas desde Isaias até João, o Batista, denunciaram práticas abusivas e imorais referente à prática dos políticos de seus dias. Eles se envolveram com a política, não apenas com as questões do Reino de Deus. Jürgen Moltmann, famoso Teólogo da Esperança, já dizia da atitude do cristão que espera o Reino de Deus, mas que não faz dessa espera uma atitude passiva. Ele chamava a atenção dos cristãos para uma nova ética da esperança que nasce da fé. Para Moltmann, a participação política, firmada em esperanças necessária ao dia-a-dia não desabona a Esperança maior firmada em Deus:

"Nós não somos só os intérpretes do futuro, mas já os colaboradores do futuro, cuja força, na esperança como realização, é Deus. [...] a ética ... não é só uma consequência da fé, mas [faz compreender] que a própria fé tem um contexto messiânico, no qual adiquire todo o seu significado, e que a própria teologia está sempre numa dimensão política que a torna relevante. (apud MONDIN, 2003, p. 285)".
Também o teólogo católico alemão Johann Baptist Metz, precussor da Teologia da Libertação, soube muito bem explorar o conceito de teologia política quando argumentou que Deus sofre ao dividir a dor da sua criação, afirmando ainda que, encarando as condições da criação de Deus que em sua dor clama para o Céu, seria impossível para o teólogo do Deus Criador evitar a suspeita de indiferença, a menos que soubesse compreender a língua do sofrimento de Deus. Concordo com Metz sobre a questão da indiferença, quando somos cegos às necessidades do mundo. Contudo, sobre a questão se Deus sofre ou não, é outra história, e não cabe comentar aqui...

Voltando ao pensamento inicial do Professor Milton, me lembro que a ciência política foi muito bem desenvolvida pelos gregos, povo que soube influenciar o mundo todo com suas idéias. Por isso, seria bom perguntar aos gregos o sentido mais pleno dessa palavra. Para os gregos, o termo “política” era usado para descrever a ação daqueles que governavam suas poles (cidades). Nada havia de satânico, demoníaco ou imoral no teor da palavra. Mas e quanto ao nosso contexto? Posso pensar que em nossa pátria, desde os dias da Nova República, inaugurada por Tancredo Neves, a política é democrática. Na verdade, o sentido de República é justamente "coisa pública", e se refere a uma modalidade de governo no qual o povo é soberano.

Durante o período de repressão, nos dias de militarismo, já éramos políticos quando sonhávamos a revolução e a queda da repressão. Desde os poetas e cantores engajados, dos movimentos estudantis e dos movimentos operários, em todos os tempos e lugares, todos éramos políticos, enquanto sonhávamos o direito à liberdade de ir e vir dentro de nossa própria terra. E hoje, após um longo período de repressão, quando nós como uma nação temos o privilégio de uma participação ativa nas questões governamentais, me atrevo a dizer (perdoem minha ousadia) que todos ainda somos, de certo modo, políticos. A meu ver, político é todo cidadão participativo nas questões políticas que influenciam o caminhar de sua gente, de sua comunidade, de seu povo. Melhor expressado: político é aquele que participa ativamente no processo de desenvolvimento político no governo de sua nação. Se questiono ações do governo, exerço meu direito político. Se participo na escolha de um candidato a um cargo eletivo, pode-se dizer que estou em um exercício político. Mesmo se me abstenho de me envolver na política, ainda assim minha atitude é de algum modo, política. E penso que isso não deveria jamais ser pensado como algo contrário à fé.

Assim, penso que posso colaborar para uma visão mais pacífica sobre nossas participações em questões populares com respeito a política. Nestas questões, todo cuidado é pouco, mas nunca devemos nos envergonhar diante de um desafio na participação popular que contribua para a melhoria de nossa comunidade. Nunca deveríamos negar nossa força e apoio a alguma causa nobre que venha de algum político em seu posto de governo. Também penso que não haveria nada de mais em solicitar ou aceitar seu apoio à nossa causa quando a ocasião a isso favorecer e em circunstâncias em que nossos valores cristãos não estejam ameaçados.

Os Teólogos da Libertação puderam compreender bem esse papel do cristão frente à política, mesmo a partir da leitura da Bíblia. Eles foram originais em seu pensamento quando afirmaram o papel dos profetas. Os profetas foram ativos na denúncia dos erros de conduta dos governos, defenderam a causa dos pobres e lutaram pelo restabelecimento do direito na Terra. Os profetas lutaram pelo Reino de Deus, mas não abriam mão de um mundo mais justo.

Certa vez questionei sobre a Teologia da Libertação em sala de aula, dizendo o quanto eu simpatizava com sua visão teológica da práxis cristã. A busca de uma verdadeira ortodoxia ligada a uma verdadeira ortopraxia me seduzia nos meus idos dias de Seminário. Quando perguntei ao saudoso professor Walvertrudes (vulgo Vavá) qual teria sido a falha dessa abordagem teológica focada na libertação, ele simplesmente me disse que o único erro foi a promoção da violência em nome do Evangelho, como se isso fosse parte integrante do mesmo. Hoje eu compreendo que alguns teólogos deste movimento foram além disso, e quiseram promover o Reino de Deus na Terra segundo a utopia materialista de Karl Marx, relativizando também questões fundamentais, envolvendo a soterologia, hamartiologia, etc... Mas isso também é outra história...

Poderia eu confessar uma coisa? Nestes dias em que o próprio papa denunciou uma visão extremada do socialismo dentro da estrutura do catolicismo, eu digo: à parte da violência em favor da paz e do evangelho, eu ainda creio que a Teologia é a maior promotora de libertação, não apenas moral e espiritual, mas também política e social, para todas as gentes em todos os lugares.

Sou da paz e também sou da libertação. Jesus mesmo proclamou sua missão libertadora em Lc 4:16ss. E sem essa força que o evangelho tem de libertar o ser humano das amarras espirituais, materiais e sociais para a criação de um Homem novo, um Mundo novo, penso que para nada mais presta, senão para ser pisado pelas gentes.

Apêndice:

Definição dos termos segundo o Dicionário Houais da língua portuguesa.
Político

Etimologia: gr. politikós,ê,ón 'relativo a cidadão, que se compõe de cidadãos; relativo ao Estado, público; hábil na administração de negócios públicos; popular; capaz de viver em sociedade', pelo lat. politìcus,a,um 'relativo ao governo ou a homem de estado'; ver polit-; f.hist. sXV politica, sXV polytico.

1 relativo ou pertencente à política
1.1 relativo ou pertencente à política partidária
2 relativo aos negócios públicos
3 que exerce ou persegue influência administrativa em níveis federal, estadual, municipal etc.
4 relativo ou pertinente à cidadania
5 cuidadoso, prudente ou ladino em coisas práticas; diplomático
5.1 formulado de maneira engenhosa, convincente, persuasiva

República:

Etimologia: lat. respublica < lat. res publica 'coisa pública, o Estado, a administração do Estado'; ver public- e re(i)-; f.hist. sXV republica, sXV reepubrica, sXV ree publica, sXV repruvica, sXV rrepublica, 1603 respublica

n substantivo feminino
1 forma de governo em que o Estado se constitui de modo a atender o interesse geral dos cidadãos
2 Rubrica: termo jurídico.
forma de governo na qual o povo é soberano, governando o Estado por meio de representantes investidos nas suas funções em poderes distintos (p.ex.: Poder Legislativo, Poder Executivo, Poder Judiciário).

BIBLIOGRAFIA

HOUAIS, Antônio. Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa: edição especial. Produzido e distribuído por Editora Objetiva. São Paulo, março de 2002. 01 cd-room.
MONDIN, Batista. Grandes Teologos do Século Vinte. Teológica. São Paulo, 2003.
_______. Os Teologos da Libertação. Edições Paulinas. São Paulo, 1980.
SALINAS, Maximiliano. Demonologia e Colonialismo: histórico da compreensão folclórica do diabo no Chile. in: RICHARD, Pablo (Org.) Raízes da Teologia Latino-americana. Edições Paulinas. São Paulo, 1987. p. 418-437.

[obs do autor: este post foi publicado nesta página pela primeira vez em 11/2009]

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