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A Comunidade de João: História, Teologia e Testemunho



Como as discussões recentes revelam a autoria do Evangelho de João, com base em Bultmann, Brown, N. T. Wright,  Baukham, Blomberg.

Palavras - chave: Evangelho de João, Rudolf Bultmann, Raymond Brown, N. T. Wright, Teologia contemporânea, Estudo bíblico. 

Entre os evangelhos do Novo Testamento, o de João permanece, ainda hoje, como o mais enigmático e teologicamente provocativo. Sua linguagem simbólica, seus diálogos profundos, sua cristologia elevada e sua marcada tensão com os líderes judeus de sua época levantam questões que vão além da narrativa histórica de Jesus: quem o escreveu, em que contexto, com que intenção e em nome de que comunidade? Essas perguntas têm mobilizado gerações de estudiosos, desde os Pais da Igreja até os teólogos contemporâneos, e são o ponto de partida para refletirmos sobre o que muitos chamam de “a comunidade joanina”.

O velho debate


A tradição eclesiástica antiga — especialmente através de Irineu de Lião — afirmava que o evangelho fora escrito pelo próprio apóstolo João, filho de Zebedeu, o discípulo amado de Jesus. Essa posição manteve-se por séculos como a opinião predominante, mas o surgimento da crítica moderna, especialmente a partir do século XIX, lançou novas luzes (e sombras) sobre essa autoria. 

Para o influente teólogo Rudolf Bultmann, o evangelho de João não é o produto direto de um apóstolo ocular, mas de uma comunidade helenística de tendência gnóstica moderada que reinterpretou tradições sobre Jesus à luz de uma teologia mais simbólica e mística. Bultmann via no texto uma estrutura redacional que mesclava fontes anteriores com uma teologia altamente elaborada, marcada por dualismos entre luz e trevas, verdade e mentira, espírito e carne. 

Raymond Brown, embora não partilhasse do radicalismo de Bultmann, ofereceu uma leitura igualmente crítica, porém mais pastoral e histórica. Em sua obra monumental, Brown propôs que o Evangelho de João nasceu de uma comunidade concreta, formada em torno de um “discípulo amado” — um personagem histórico real, embora de identidade incerta — cujo testemunho foi progressivamente interpretado e ampliado por seus seguidores. Para ele, o evangelho passou por três momentos: uma fase de testemunho original, uma redação intermediária e uma edição final que agregou elementos teológicos e eclesiais mais amplos. Essa leitura situa João num ambiente de tensão crescente com o judaísmo rabínico emergente, especialmente após a destruição do Templo em 70 d.C., o que explicaria o tom cada vez mais crítico contra "os judeus" ao longo do texto. 

O Evangelho, portanto, reflete mais do que apenas a memória de Jesus; ele encarna o drama de uma comunidade em crise de identidade. Expulsa das sinagogas, perseguida por afirmar a divindade de Jesus, e confrontada com a perda de sua matriz religiosa judaica, essa comunidade passou a reinterpretar sua fé em categorias cada vez mais exclusivas, místicas e pneumatológicas. O Espírito Santo — o Paráclito — não é apenas uma força de consolo, mas o próprio guia hermenêutico que dá sentido à ausência de Jesus e legitima a nova leitura das Escrituras. Como Brown observou, o Espírito é aquele que “ensina, relembra e guia”, sustentando a comunidade na ausência visível do Cristo. 

N. T. Wright, um dos maiores teólogos contemporâneos, oferece uma correção importante a leituras excessivamente gnósticas do evangelho. Para ele, João é, sim, um teólogo sofisticado, mas profundamente enraizado na tradição judaica. O Logos encarnado não é um conceito abstrato helenista, mas o próprio Deus de Israel que se fez carne e “armou sua tenda entre nós” (Jo 1.14). A teologia joanina, nesse sentido, não rejeita o mundo material, mas o eleva: cada sinal (milagre) de Jesus é uma proclamação escatológica, uma ruptura no tempo, um anúncio de que a nova criação já começou. A comunidade joanina, para Wright, não é uma seita gnóstica, mas uma nova forma de Israel, que reconhece no crucificado o seu verdadeiro rei. 

Ainda assim, o texto não é homogêneo. A crítica textual e literária detecta camadas distintas, tensionamentos internos e até duplicações narrativas que sugerem múltiplas fases de composição. O exemplo mais evidente é o capítulo 21, que se apresenta como uma “segunda conclusão”. Após o final aparentemente definitivo em João 20.30-31, que declara que “estes sinais foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo...”, somos conduzidos a um novo cenário: a pesca no Mar de Tiberíades, a tríplice reafirmação de Pedro, e a intrigante conversa sobre o destino do discípulo amado. Para muitos estudiosos críticos, esse capítulo representa uma adição posterior, escrita por uma comunidade joanina já estruturada, buscando reconciliar ou equilibrar a autoridade de Pedro com a do discípulo amado. Brown vê aqui um esforço pastoral e eclesial de acomodação entre duas lideranças carismáticas.

Uma visão conservadora


No entanto, a visão conservadora contesta fortemente essa ideia de fragmentação e redacionismo tardio. Richard Bauckham, em sua obra essencial Jesus e as testemunhas oculares, argumenta que o evangelho de João é, sim, produto de um testemunho ocular — não apenas reminiscência espiritual, mas lembrança histórica detalhada. Bauckham vê no “discípulo amado” não uma figura simbólica ou literária, mas uma pessoa real, cuja memória foi registrada com cuidado. Ele destaca que o evangelho traz detalhes vívidos demais — como a quantidade de ânforas em Caná (Jo 2.6), o peso da rede (Jo 21.11) ou a água e sangue do lado de Jesus (Jo 19.34) — para ser produto de pura reflexão teológica.  Outros estudiosos conservadores, como Craig Blomberg e D. A. Carson, reforçam essa visão, defendendo que João 21 é uma continuação orgânica, escrita pelo mesmo círculo autoral, com o propósito de completar a narrativa de forma teológica e pastoral, sem rupturas estruturais. 

Essa convivência entre crítica histórica e afirmação do testemunho apostólico é, talvez, a chave mais honesta para ler João hoje. O evangelho se apresenta como fruto de uma memória vivida, atravessada por um processo teológico intenso, mas que nunca se desconecta da figura real de Jesus de Nazaré. O “discípulo amado” não apenas escreve — ele dá testemunho. E esse testemunho, como afirma João 21.24, é considerado verdadeiro. Talvez não tenhamos acesso direto à sua identidade precisa, mas temos acesso à sua fé, ao seu olhar, à sua forma de contar o Cristo crucificado e glorificado. 

Conclusão


Em um tempo como o nosso, onde a fé é frequentemente reduzida a fórmulas, estruturas ou slogans, o evangelho de João nos convida a mergulhar numa espiritualidade mais profunda, numa leitura mais teológica, e numa escuta mais atenta do Espírito. A comunidade joanina nos desafia não apenas a crer em Jesus, mas a habitar a sua presença, a viver na tensão entre o "já" e o "ainda não", entre a história e a eternidade. E, nesse sentido, João continua sendo não apenas um evangelho diferente, mas um evangelho necessário — uma luz que brilha nas trevas, e que as trevas não conseguiram apagar.


Vanos juntos?

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